No final da década
de 60, com o recrudescimento dos atos de sabotagem, seqüestros
de personalidades, desvios de aviões e outros atos de reação
ao arrocho da ditadura que se instalara em 64 neste país, a Centro-Oeste,
empresa de transporte ferroviário com sede em Belo Horizonte
foi compelida a organizar o seu próprio Setor de Segurança.
Além das atribuições
de checar e catalogar as tendências político-ideológicas
de cerca de 11.000 servidores, passando-as ao conhecimento das autoridades
repressivas, subordinada a esse Setor foi criada a Polícia Ferroviária,
cuja principal atribuição era a guarda e vigilância
armada dos bens patrimoniais da Estrada.
Para dirigir essa Polícia
foi convocado um escriturário de capacidade profissional e intelectual
discutíveis e que houvera se infiltrado no círculo diretivo
da Estrada graças à sua subserviência ou, se quiserem,
descarada bajulação. A credencial para o cargo foi
embasada na prática da leitura obsessiva que fazia da X-9, revista
policialesca da época, e algumas incursões pelo Gibi,
onde o Mandrake, o Fantasma e até o Capitão América
eram seus heróis preferidos. Também na televisão
não perdia episódios dos seriados Hawaí 5.0 e Bareta.
Possuía realmente um currículo fantástico e que
o qualificavam plenamente para o desempenho das funções!
Intitulou-se comandante
Alecrim e, para seu fiel escudeiro, conseguiu a nomeação
do sargento Mundico, seu colega de seção, de conhecimentos
policiais e de filosofia de vida.
A Polícia foi instalada
em amplo salão no 7º andar do prédio da administração,
local sujo, abafado, mal iluminado e que nem servido era pelos elevadores
do edifício, sendo utilizado apenas como depósito de sucata
dos móveis e utensílios da empresa. Um telefone interno,
um quadro negro, duas mesas e cerca de 50 cadeiras reformadas formavam
o gabinete do comandante Alecrim e do sargento Mundico.
Proibida que estava a contratação
de pessoal, o problema de lotação do quadro de guardas
foi resolvido com a convocação de cerca de setenta funcionários
da antiga Estrada de Ferro Bahia-Minas, recém desativada, e cujo
patrimônio e pessoal foram absorvidos pela Centro-Oeste.
O comando da Polícia
Ferroviária tinha conhecimento que a tarefa de treinamento desse
pessoal seria muito problemática. Tratava-se de pessoas muito
simples, acostumadas a um ambiente social e profissional totalmente
diferente, grande parte analfabeta e com problemas sérios de
saúde. Sofriam discriminação de toda espécie,
inclusive a designação genérica e pejorativa de
baianos. Mas não havia outro recurso e o quadro policial
foi formado exclusivamente por eles, tendo cada um recebido o respectivo
uniforme composto de um par de botinas, dois conjuntos de blusa e calça
cinzas, um crachá e um quépi azul com as iniciais P. F.
em destaque.
Na reunião para entrega
do armamento composto de um cinturão, um cassetete e um revólver
calibre 32, o comandante Alecrim, do alto de sua arrogância e
prepotência, se dirigiu à tropa em pose autoritária
e professoral:
– Vocês estão
recebendo esse equipamento e quero que o honrem e façam bom uso
dele em nome da pátria e da revolução. Lembrem-se
que o comunismo ateu e selvagem e a subversão devem ser os inimigos
que todos nós devemos combater sem tréguas. Ainda hoje
fui comunicado que está havendo roubo de fios de telegráfos
entre as estações de Divinópolis e Santo Antônio
dos Campos. Há suspeitas inclusive de que uma célula subversiva
está em formação na área, com treinamento
de guerrilheiros e sabotadores. Em missão altamente secreta,
vamos partir à tarde para a região a fim de prendermos
os ladrões e estourarmos o núcleo contra-revolucionário.
Dirigindo-se ao quadro negro,
traçou a estratégia para o ataque:
– Esses traços horizontais
paralelos identificam a linha férrea e uma estrada de terra que
corta a região. Entre os dois há uma mata fechada e é
esse o ponto onde se reúnem os ladrões e subversivos.
Nós vamos atacar nesse ponto em duas frentes, num movimento de
pinças e formar um bolsão para cercar e prender os inimigos.
No local serão dadas novas instruções para a operação.
E vinte agentes em quatro
veículos Rural Willys partiram à tarde com intervalo de
quinze minutos entre cada um para evitar suspeitas. Depois do jantar
em Divinópolis houve o deslocamento da tropa até o local
da operação onde o comandante Alecrim deu as últimas
instruções:
– A cem metros de distância,
dez guardas de cada lado formarão um semicírculo com o
espaço de cinco metros entre cada elemento. As extremidades serão
comandadas pelos agentes 34 e 27 de um lado e 18 e 44 do outro. Tomarão
posição e, ao sinal do apito do sargento Mundico, irão
se deslocando em sentido contrário até que o círculo
seja fechado, cercando e dominando o inimigo em seu interior. Quero
a maior atenção e silêncio na operação
pois disso dependerá o seu êxito. Boa sorte!
E a tropa tomou posição
segundo as determinações superiores. Pela madrugada ouviu-se
o apito do sargento e começou o deslocamento silencioso e tenso
dos agentes. Quando as colunas estavam a menos de 10 metros de distância
e sem que se pudesse ainda divisar nada na escuridão da mata
fechada, um guarda pisou no ninho de uma nhambu que chocava sob uma
moita. A ave se assustou e após o pio característico,
voou estabanada em direção à pequena clareira.
O guarda, não conseguindo manter a calma e achando que estava
sendo atacado, puxou o gatilho e deu o primeiro tiro. A resposta
do outro lado foi imediata, formando-se a maior batalha e confusão
dentro da mata entre os membros das duas colunas. Foi tiro para todo
lado, até que a munição se esgotasse.
Dia amanhecendo, operação
encerrada, saída dos agentes do campo de operação,
tropa enfileirada e feita a chamada dos agentes: faltavam quatro. Voltou
então a tropa à mata para localização dos
companheiros desaparecidos. Três foram logo localizados: o 08,
Joaquim de Sá Justina, tinha levado um tiro no traseiro e estava
desmaiado debaixo de uma moita; o 22, Maneco da Ordália, agarrado
a um toco, debulhava um terço com a calça
toda molhada na frente e borrada atrás; o 49, Geraldo Cavalo,
do alto de uma árvore de espinhos, não conseguia gritar
nem descer. Quanto ao 33, o Gato Espantado, foi visto pelo 42, o Pitico,
em desabalada carreira rumo a Divinópolis logo no começo
da fuzilaria.
– E os perigosos ladrões
e subversivos?
– Nunca existiram. O furto
dos fios era feito à luz do dia pelos próprios empregados
da Estrada...
Coisas dos competentes arapongas
da Centro-Oeste que não podiam ser comentadas na ocasião
pelos ferroviários sob pena de demissão sumária
e recolhimento ao DOPS para quem desobedecesse...
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