ODISSÉIA DE UM TURISTA AZARADO

 

Raramente se tem notícias de pessoa tão azarada como o Tonico do Brejo.

O rapaz era mal sucedido em tudo. A começar do seu nascimento de mãe solteira, prematuro de sete meses, vivendo os primeiros quinze dias em incubadora hospitalar, entre a vida e a morte. Saindo do hospital, arrastou consigo uma renitente bronquite asmática e um raquitismo digno de garoto sudanês. Chiava mais alto que apito de trem na curva e deu os primeiros passos somente depois dos três anos de idade. Com inúmeras visitas aos médicos e sempre acompanhado pelo desvelo e atenção da mãe, foi crescendo até ser matriculado na escola onde cumpriu um famoso 7 x 3 (7 anos de escola até a 3ª série). Aos 15 anos de idade concluiu que não tinha jeito para o estudo e abandonou as aulas.

Justiça porém se faça ao Tonico. Era muito trabalhador. Ao se ver livre dos cadernos e dos livros, arranjou um emprego na Fazenda do Brejinho, onde era imbatível nas lidas do curral e da roça. Bom tirador de leite e ótimo no cabo da enxada, os exercícios até que fizeram bem à sua saúde dando-lhe um pouco mais de corpo e aumentando a sua resistência física. Não se livrara porém do uso de óculos de elevado grau que as seqüelas das doenças lhe deixaram. Entretanto o azar continuava: duas vezes fora “esfregado” nas réguas do curral por uma vaca indócil e, em outra ocasião, mordido por cobra na capina de uma roça.

Porém, o Tonico trazia consigo uma verdadeira obsessão: houvesse o que houvesse, teria que ver o mar. Nas imagens da televisão, ficava absorto com a imensidão da água azul-esverdeada em constante movimento, com as areias claras das praias e, principalmente, com o porte esbelto e faceiro de seus “mal vestidos” freqüentadores.

– Vou lá, ainda que seja a última coisa que faça na vida! – dizia o Tonico para si mesmo.

E essa ocasião apareceu. A Joaquina Sacoleira, já tarimbada pelas inúmeras excursões ao Paraguai, resolveu também organizar uma, só que em direção às praias do Espírito Santo. E lá foi o Tonico para saber as condições da viagem.

– Oia aqui. Nós vai saí na quarta-feira da Semana Santa, de noite. Correno tudo bem vamo chegá em Vila Veia quinta cedo. Vamo ficá lá até de tarde e vamo pra Guarapari. Passamo a sexta lá e encerremo em Marataízes, no sábado. De tarde nós vorta, chegano aqui domingo ainda de dia.

– E o preço Dª Joaquina?

– Eu tenho treis preço: cum direito a cumê no restorante e banho nos treis dia, 100 real; pra só tomá banho, 50 e só a viage, 20 real.

Tonico voltou à fazenda, pediu licença ao proprietário, recebeu um adiantamento de 40 reais e foi pra casa.

– Mãe, até que enfim vou conhecer o mar. Na Semana Santa vou na excursão da Dª Joaquina para o Espírito Santo. Como o dinheiro tá curto, eu vou nas condições mais econômicas e como é proibido farofa de carne nesses dias, para minha alimentação a senhora compra meio queijo e uma rapadura, embala direitinho e bota na sacola ao lado das roupas. Aqui estão 10 reais para as despesas.

No dia certo, duas horas antes do início da viagem, lá estava o Tonico. Chegou o reformado ônibus Mercedes 1984 com a pintura de uma andorinha nas laterais e logo abaixo, pomposamente escrito: Expresso Sul Americano Turismo e Excursões Ltda. Tonico, o primeiro da fila, alojou-se numa poltrona ao lado da janela e, depois das confusões próprias de embarque, foi dada a ordem de saída por Dª Joaquina.

Com o pouco costume de viagens rodoviárias pois só tinha ido três vezes a Sete Lagoas na carroceria de um caminhão para ajudar no transporte de ração, antes de Belo Horizonte Tonico já sentia sinais de enjôo e, nas curvas da estrada para Monlevade, não deu mais para resistir: botou a cabeça para fora da janela do ônibus e “mandou ver”. Recostada na poltrona de trás, já um tanto cansada, estava a Filó cochilando com a boca semi-aberta. Pela força do vento o “grosso da mercadoria” expelida pelo Tonico refluiu e atingiu em cheio a cara da passageira que, por sinal tinha algumas “diferenças” com a mãe do Tonico motivadas por divergências de crenças religiosas.

A Filó acordou assustada, pegou uma toalha que estava sobre o colo, limpou aquela “gosma” e, vendo que partira da poltrona da frente, levantou-se, dobrou-a novamente, pegou em uma das pontas e desceu-a com toda a energia e vários palavrões em direção à cabeça do azarado colega de viagem. Com o impacto, os óculos do Tonico se desprenderam e foram se espatifar no asfalto, sendo literalmente moídos pelas rodas traseiras do ônibus.

Com a intervenção da Dª Joaquina e pedidos de desculpas daqui e dali, a viagem prosseguiu chegando ao destino com ligeiro atraso.

Estacionado o ônibus na avenida da orla, lá estavam todos deslumbrados com a exuberância do mar, principalmente o Tonico, apesar da restrição visual conseqüente da perda dos óculos. Esperou que todos descessem, foi lá no fundo do ônibus, vestiu o calção vermelho estampado na retaguarda com motivos havaianos em roxo e se dirigiu todo lépido para a praia ainda com poucos freqüentadores. Como não queria dar vexame, verificou o procedimento dos demais banhistas e entrou no mar muito calmo àquela hora. Caminhou alguns passos, gostou da temperatura da água banhando seus pés, depois o joelho e o bater das ondas em seu corpo extasiava-o cada vez mais induzindo-o a prosseguir até que deu conta de que estava submerso até o peito.

Aí é que se deu o inesperado. Para avaliar a distância em que estava da praia o Tonico virou-se de costas para o mar e, sem que notasse, uma onda mais alta o atingiu em cheio. Com o impacto, a dentadura saltou-lhe da boca e ele, debatendo-se contra a força da onda e no desespero em alcançar a peça que boiava ali perto, tentou se deslocar rapidamente em sua direção mas embaraçou-se na areia, desequilibrou-se e foi, aos trambolhões, arrastado de volta à praia, absorvendo expressiva quantidade de água pela boca, nariz e ouvido. Na ânsia de se safar da situação não sentiu que o calção houvera descido até os joelhos, devido ao rompimento da presilha de sustentação, até que pressentiu que alcançara algo sólido em que poderia apoiar-se e sair daquela situação aflitiva. Agarrou aquilo, levantou-se e aí viu que segurara em algo errado: era a perna de uma deslumbrante mulata que ali estava devidamente acompanhada de um negão tipo guarda-roupa de portas abertas e que foi por ela alertado:

– Arfredão, oia o tarado me garrano! Tá sem carção e sigurano nas minhas perna!

No afã de procurar uma sustentação definitiva para se equilibrar e colocar o calção no devido lugar, o Tonico soltou a perna da moça e se agarrou em algo de seu corpo, mais acima, onde, definitivamente, não poderia pegar. Aí chegou o Alfredo que rapidamente venceu os quatro metros que o separava da mulher e, com um cruzado de direita, mandou o Tonico beber água novamente. Aos ponta-pés e palavrões arrastou-o pelos cabelos até a areia.

Os colegas de viagem do Tonico correram para o local e, com uma toalha, cobriram as suas partes íntimas expostas ao sol e se derreteram em desculpas com o Alfredo que saiu resmungando e dizendo entre os dentes:

– Donde já se viu tanto disrespeito! Na minha Nenê ninguém bota a mão não! Ainda mais um minero desse que tá inté fedeno a quejo, sô!

Carregado para o ônibus o Tonico recebeu os primeiros socorros recobrando os sentidos e pressentindo que sua aventura turística terminara ali. Perdera os óculos, a dentadura, quase se afogara, levara um murro com potência de coice de mula, agravara a rixa de sua mãe com a Dª Filó e, o pior, ficara definitivamente comprometida a sua reputação masculina ao se expor tão vexatoriamente à observação dos colegas de viagem.

– Mar, nunca mais!

E só saiu do ônibus quando ele retornou a Paraopeba!

 

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