ZÉ GATO, O MARATONISTA COMPULSÓRIO

 

O Joaquim, tão capaz quanto o pai, o grande Agnaldo Edmundo, um dos pontos de referência da inteligência de Paraopeba em todos os tempos, contou-me que o Bertolino, agricultor lá das bandas do Tabuleiro Pequeno, chamou o Zé Praxedes e pediu-lhe:

– Oia, Izé, faz o favô de falá pro Zé Gato que tô muito pirriado cum as pirsiguição qui ele anda fazeno cum a Lurdinha minha fia. Ele tá é impaiano a vida dela e eu num tô gostano disso não.

E o Bertolino realmente não admitia o namoro da Lurdinha com o Zé Gato. Namoro, diga-se de passagem, que se resumia em alguns flertes nas noites de domingo, no footing da Praça da Matriz. Nunca os dois tinham sequer trocado uma palavra. Mas só de pensar em um envolvimento entre os dois, o Bertolino espumava de raiva.

– Ainda pego aquele marvado! Prá isso tô carregano agora essa faca que é prá mostrá a distança que separa ele da Lurdinha. Num sô de violença não, mais num güento mais as pessoa miá imitano gato quando passa perto de mim – concluía o Bertolino.

Mas o Zé Gato até que era boa pessoa. Simples, humilde, trabalhava no sítio do Dininho, lá pelas bandas da Vargem do Lobo. Ali ficava a semana inteira, cuidando dos animais e da horta e só vinha a Paraopeba nos finais de semana. Aos domingos substituía o seu colega Geraldo Rezende Batista (de quem o Maurílio do Nenê juntara as três primeiras sílabas do nome e transformara no Gereba), no transporte, atreladas sobre um cavalo, de duas latas com 30 litros de leite que seriam entregues em várias casas da cidade.

Após o cumprimento do itinerário, o Zé Gato chegava em casa, amarrava o cavalo em baixo da mangueira, tomava o banho semanal, limpava as unhas com um palito de fósforo, raspava a barba rala, aparava o bigode, vestia a calça branca e camisa xadrez e aí começava o drama: calçar os sapatos. Não se sabia quem tinha mais aversão, se os sapatos pelos pés do Zé Gato ou se o contrário. O certo é que era uma luta o acoplamento!

– Ô mãe a sinhora pôs o mio de molho dentro do sapato prá ele alargá mais o bico e passô sebo nele prá mode amaciá mais? Num tô cunsiguino carçá ele de jeito ninhum. Traz uma cuié prá ajudá o carcanhá incaxá pois eu já botei tarco, fiz uma força danada e nada dele iscurregá lá prá dentro!

Depois da luta, e até que os dedos sobrepostos ficassem anestesiados pela compressão do calçado, ía o Zé Gato manquitolando e suando em bicas em direção à Matriz para a missa das nove. Depois do almoço, recostava-se em uma cama, tirava uma soneca e lá pelas três horas, invariavelmente iria cumprir o restante de seu programa: dirigir-se ao campo do Paraopeba, assistir ao treino do time, passar no bar do Nonô onde sapearia algumas partidas de sinuca e descer depois para a Praça da Matriz onde após a reza das sete horas poderia ver, mesmo que de longe, a sua amada Lurdinha.

Havendo recebido o recado por intermédio do Praxedes, o Zé Gato redobrara os cuidados e passara a se postar sempre numa posição estratégica a fim de que não fosse surpreendido no caso de um ataque do Bertolino.

Naquela tarde, porém, ele se distraíra. Absorvido com as jogadas do Otávio, do Neves, do Quiléu e demais jogadores no treino, estava com a retaguarda desprotegida, sentado sobre um pedaço de jornal no barranco que circundava uma das laterais do campo. E foi por aí que veio o Bertolino, regressando da casa da Tiola onde fora entregar uma encomenda de quiabos, com o balaio em uma das mãos e com a faca na outra.

– É ocê mesmo qui ando percurano, cabra safado. Já mandei te dizê prá num oiá mais prá minha fia e ocê tá temano. Agora, vai me pagá, vagabundo!

O Zé Gato virou-se e quando viu a lâmina da faca brilhando, deu um salto, desvencilhou-se do primeiro golpe mas não conseguiu escapar do segundo, levando uma furada no traseiro. Reuniu todas as energias para se safar da situação, mas o maldito do sapato não lhe permitia desenvolver a carreira necessária para se afastar do perigo. O Bertolino, embora de idade mais avançada mas ainda com bom preparo físico, se aproximava, xingando e babando de raiva, com a faca na mão. Atravessaram toda a extensão do campo e quando parecia que tudo estava perdido para o Zé Gato, o Bertolino tropeçou em um montinho de grama, desequilibrou-se e estatelou-se na poeira. Enquanto o agressor se levantava e tentava tomar pé da situação, o Zé Gato parou, equilibrou-se em uma das pernas, arrancou um sapato, atirou-o longe e imediatamente fez o mesmo com o segundo. Quando a poeira baixou, o Zé Gato, completamente livre, já havia saído do campo e daí só foi visto até a primeira esquina. Nem em casa passou para se despedir da mãe e, de um só fôlego e olhando prá trás de vez quando, como os atuais maratonistas, só foi parar lá no sítio onde trabalhava, a cerca de 12 quilômetros da cidade.

Mandou o Gereba buscar o cavalo e só voltou a Paraopeba dois meses depois, não ultrapassando a casa de sua mãe, na periferia da cidade...

Poucos anos depois, o Bertolino faleceu e então o Zé Gato pode se aproximar da Lurdinha e, somente no dia do casamento, voltou a se calçar novamente. Também não ficaria bem o noivo usar alpercata de solado de pneu na cerimônia religiosa ao lado de convidados e testemunhas adequadamente trajadas para o ato...

***

Recordações de fatos acontecidos em uma cidade bucólica e romântica e que atualmente não seriam mais notados, tal a banalização da violência que assola nossos tempos, espelho do procedimento de uma sociedade insensível, egoísta e insensata e da qual todos nós, inconscientemente ou não, temos nossa parcela de culpa.

 

 

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