MENDIGOS DE CASACA

 

Depois de reclamarem do governo, da violência, da poluição, do clima, do custo de vida, das drogas, do baixo valor das aposentadorias, da inflação, dos novos costumes da juventude, afinal, de tudo e de todos, o Bernardo Marinho e o Dudú do Portápio partiram para o saudosismo.

– No nosso tempo, lá em Paraopeba, não tinha disso não. A vida era tranqüila, calma, despreocupada. As pessoas confiavam umas nas outras, a tranqüilidade era geral, você lembra, né Dudú?

– É, Bernardo, nós estamos aqui no bar tomando esta cerveja e poderemos ser surpreendidos a qualquer momento com ação de assaltantes ou de traficantes acertando contas na base do tiroteio. No centro da cidade só vou quando não há outro recurso. Pivetes e trombadinhas aos montes. Outro dia assaltaram minha vizinha e, na falta de outra coisa de maior valor, imagine, tomaram dela um vale transporte!...

– Mas Paraopeba também, pouco antes de minha mudança para Belo Horizonte, sofreu com a invasão de uma onda de marginais transvestidos de mendigos e que todos os sábados atormentavam a população.

– Sabia não, Dudú. Como era?

– Você sabe que numa certa ocasião, a cidade atravessava uma fase de franco progresso. Fábricas eram reativadas, implantadas serrarias de ardósia e até de mármore, abertura de várias agências bancárias, construção de anel rodoviário, comércio em franca evolução com investidores locais e de outras cidades, bairros novos, um até com chiquérrimo nome francês, população feliz com a poupança “rendendo” mais de 80% ao mês e muitas outras coisas que faziam de Paraopeba um verdadeiro paraíso. Isso naturalmente extravasou os limites municipais e açulou a cobiça de mendigos de uma cidade ao norte da nossa, que, ao contrário, atravessava período de forte recessão. A princípio, quatro ou cinco deles resolveram “investir” em Paraopeba. Vinham pela manhã e regressavam à tarde com excepcional féria auferida. E o número de mendigos foi crescendo, até que a empresa de ônibus resolveu não mais transportá-los, tanto pelos trajes inadequados que usavam como pela ocupação de grande espaço nos coletivos, prejudicando a arrecadação pela utilização de somente uma parte do itinerário.

– E aí, Dudú, acabou a “boca”?

– Que nada, Bernardo. Resolveram então alugar uma van. Estacionavam na Ponte do Matias, dividiam a cidade em setores e iam à luta. Sucesso total e aumento cada vez maior do número de mendigos. Resolveram então criar uma cooperativa: a COMEA (Cooperativa dos Mendigos Associados) registrada com todas as formalidades legais, sede própria, escritório informatizado, oito funcionários em tempo integral. Era só progresso. Tiveram que substituir a perua por um ônibus de 45 lugares que logo depois foi comprado. Alguns já sonhavam até com a mudança da forma societária a fim de possibilitar o lançamento de ações na Bolsa de Valores...

– Continua assim atualmente?

– Infelizmente a crise mundial atingiu também a economia de Paraopeba, onde a recessão começou a se fazer sentir. A liberalidade dos habitantes foi restringida atingindo em cheio a fonte de arrecadação da COMEA. Além do mais, a polícia resolveu agir com energia e acabar definitivamente com a farra dos mendigos alienígenas.

– É Dudú, acredito no que disse, baseado mais na sua seriedade do que na probabilidade do acontecido...

Mas o Bernardo não podia ficar prá trás. Engoliu em seco, pediu mais uma porção de salgado e, dentro do tema, começou a relatar a sua estória:

– Pois é, Dudú. Outro dia tive que fazer uma entrega de impressos lá no Belvedere. Peguei o Fiorino e estacionei numa rua lateral enquanto o boy transportava os pacotes para o cliente, no 5Ί andar de um edifício da avenida principal. Estava admirando a beleza das construções do bairro proporcionada pelo alto padrão de vida de seus habitantes, quando à minha frente estacionou uma moto Kawasaky Ninja, último tipo, com um enorme baú acoplado à garupa. Estranhei porque veículos importados na região é comum mas moto daquela categoria com bagageiro é coisa rara.

– Vai ver que era entregador de pizza!

– Mas em moto Kawazaky? Não podia ser!

– O motoqueiro desceu da “máquina”, tirou o capacete, pegou o telefone celular, discou, aguardou alguns segundos e começou a falar:

– Bom dia, Dͺ Generosa. Aqui é o “Zé da Miriam” a pessoa que vem ao seu edifício semanalmente pegar a contribuição...

– ...

– O segurança proibiu que eu entrasse no edifício e por isto estou pedindo que a senhora mande trazer o donativo até a portaria, combinado?

– ...

– É Dͺ Generosa. Sei que é implicância do síndico. Tudo bem. Quero lhe pedir mais um favor: se a contribuição for em mercadoria, observar bem a data de validade do produto e minha preferência continua sempre por embalagens fechadas. Se em dinheiro, quero que a senhora mande dólares, pois na última desvalorização do real tive um prejuízo imenso...

– ...

– Não. Daqui a uma hora, pois nesse edifício são 52 apartamentos e tenho que me contactar com todos os moradores. Existem até estrangeiros no prédio e a comunicação tem que ser feita em inglês ou francês e, às vezes, o entendimento é mais demorado... Boa tarde, Dͺ Generosa. Recomendações ao Sr. Pancrácio e que Deus lhe pague...

– Que mendigo moderno, hein Bernardo?

– Moderno e folgado, Dudú. Quando ele já se preparava para fazer nova ligação, me aproximei e perguntei-lhe:

– Você me desculpe, mas não pude deixar de ouvir o seu telefonema. É eficiente esse seu método para pedir esmolas, mesmo com todas as exigências? Há retorno satisfatório?

– Não peço esmolas, meu amigo. Peço contribuição. Rico detesta “dar esmola” mas adora “contribuir”. Não gosta de interfone mas atende imediatamente chamadas no celular. Questão de “status”... Quando noto que as ofertas estão caindo, apelo para a arrogância dos moradores, provocando a competitividade entre eles. Digo sutilmente a um que o outro contribuiu com valores superiores e aí a vaidade impera. A arrecadação sempre cresce mais...

– E quanto a esse apelo para que as mercadorias estejam dentro do prazo de validade? É obedecido?

– Às vezes não. Ainda outro dia a moradora do 404 deste mesmo edifício me deu três quilos de lombo de porco. Como era Semana Santa e nestes dias nós só usamos lá em casa bacalhau norueguês e salmão canadense, demos a carne para os nossos pitbull. O senhor acredita que todos os seis cães tiveram uma infecção fortíssima e ficaram internados durante uma semana? Já pensou se meus filhos tivessem consumido aquele produto? Poderiam ter adoecido gravemente e até perdido o ano lá na Universidade...

– É Bernardo, a sua narrativa deve ser tão real quanto a dos mendigos da COMEA. Vinda de você, porém, tenho que acreditar...

– Garçon, traga mais uma estupidamente...

 

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