De um lado da rodovia, a 16 quilômetros de estrada de péssima conservação,
ficava Miado da Onça, povoado com 2.000 habitantes; do outro, Socó do
Meio, mais ou menos à mesma distância e com os mesmos problemas de miséria
e abandono por parte do município sede. Também pudera, a arrecadação
de ambos mal dava para pagar as quatro professoras leigas que lecionavam
nas duas escolas, único sinal do poder público no local.
Visualizando a possibilidade de aumento de suas bases eleitorais, montando
abaixo-assinados e declarações com assinaturas legais entremeadas com
muitas falsas, obtendo documentos fajutos na administração municipal
que atestavam condições técnicas e econômicas favoráveis, um deputado
estadual meio “mandrake” conseguiu, à base de votação “cruzada” na Assembléia,
a emancipação político-administrativa dos dois lugarejos transformando-os
em cidades. Junto com o projeto, foi aprovada também a mudança de nomes
para os novos municípios: Miado da Onça passou a ser Jairópolis e Socó
do Meio tomou o nome de Cecilândia, coincidentemente numa alusão aos
nomes do parlamentar e de sua mulher. Pura casualidade...
Em cada uma das cidades, autoridades executivas e legislativas foram
eleitas, alugados prédios de propriedade de correligionários para a
Prefeitura e Câmara, criadas três secretarias e adquiridas duas carroças
e oito muares para o serviço comunitário, além do indispensável carro
do ano para o transporte do prefeito e familiares.
Tempos depois da festa de emancipação dos novos municípios, chegou
em Jairópolis o Gran-Circo Internazionale Peperoni cujo quadro de artistas
se compunha do proprie-tário, dois casais de filhos e da mulher que,
àquela altura, não podia atuar devido à gravidez avançada. Sua função,
por isso, era vender as entradas para o espetáculo além de ser a responsável
pela preparação das pipocas, pirulitos e cartuchos vendidos nas arquibancadas
para auxiliar na arrecadação.
Mas a maior atração do circo era, indiscutivelmente, um sergipano de
nome pomposo: Severino Albuquerque Magalhães de Castro e Silva. Era
malabarista, trapezista principal, aramista, treinador do galo dançarino
e de seis cachorros que disputavam partidas de futebol entre si. O seu
maior sucesso, porém, era quando fazia o papel de palhaço: o Pica-Pau.
Os espetáculos eram sempre encerrados com ele ou com os animais que
treinava. O dançarino era um galo índio que, preso em um pequeno cercado
de tela, iniciava dançando freneticamente um samba e ia desacelerando
o ritmo até transformá-lo em uma valsa lenta. O segredo foi, mais tarde,
descoberto: o piso em que a ave dançava era uma chapa de aço aquecida
e isso a obrigava a alternar o pé de apoio na tentativa de não se queimar.
À medida que a chapa esfriava, a dança ficava cada vez mais lenta...
A bola de futebol dos cachorros era uma bexiga de plástico que o Pica-Pau
untava com caldo de carne e jogava na arena depois de deixar os animais
o dia inteiro sem comida... Só não participavam da disputa os goleiros
que ficavam amarrados às traves dos gols e que saltavam desesperadamente
para também alcançar a bola...
O Pica-Pau era, além de tudo, muito bom de bola. Um verdadeiro craque.
Marcava gols de todo jeito: de cabeça, batia bem de direita e de esquerda
e até “de bicicleta” já tinha feito quatro em treinos do Jairópolis
E. Clube, onde se entrosara rapidamente com os outros jogadores.
As eleições se aproximavam e o Candinho, candidato a vereador em Cecilândia,
convidou o time de Jairópolis para um festival cívico-esportivo e “alavancar”
a sua candidatura. Tudo combinado, a viagem foi feita na tarde de um
sábado para que os eleitores pudessem desfrutar da companhia do Pica-Pau,
estrela do jogo, em um bar perto da Igreja.
Ao anoitecer, aconteceu o inesperado. Pica-Pau deu um grito e reclamou:
– É o meu dente! Desde antonte ele vem latejano mas agora eu murdi
um torresmo qui abalou ele e num güento mais de tanta dô!
Foi uma correria danada. Levaram o Pica-Pau para a pensão e formou-se
então a reunião para contornar a situação. Candinho, o maior interessado,
falou:
– Nós num tem dentista aqui. Quem atende no posto é o Dr. Nereu que
mora lá em Jairópolis e lá num tem consurtoro. A cumade Ritinha tamém
pudia arresorvê mas ela só sabe benzê picada de cobra, espinhela caída
e vento virado, assim mesmo de dia que é pro sol fazê os gaio de arruda
secá e só dispois é qui vem a cura. Nós tem que buscá o Dr. Nereu, mas
o Juca, dono do automove de alugué, foi levá a muié prá tê minino in
Se’lagoa. Num tem ricurso. O jeito vai sê buscá o dentista na jardinera
que trouxe o time. Mais tem um porém: hoje tem jogo do Parmera na televisão
e o Dr. Nereu só sai dispois do fim do jogo, dos comentário, da crassificação
e dos mió momento da partida. Num adianta insistí.
– Tem treis pobrema, disse o Mulambinho, motorista da jardineira. O
Zé Piriquito mandou colocá gasolina que só dá prá ida e vorta, a lâmpida
do farol do lado isquerdo da jardinera tá quemada e eu só vô recebê
pur uma viage e vai sê duas. Oceis arresorve e me fala.
O candidato não tinha mais verba de campanha e o chefe da delegação
então reuniu as pessoas que acompanhavam o time e apelou:
– Nois tem que buscá o Dr. Nereu lá in Jairópolis prá atendê o Pica-Pau.
Sem ele seremo inté goleado. Nois tem qui fazê uma “vaquinha” de 2 pau
pru cabeça prá pô gasulina na jardinera e dá uma grujeta pro Mulambinho.
Nós veio aqui a troco da bóia e quem num tivé dinhero num vai pudê armuçá
amanhã. A dispesa da pensão vai sê menó e intão a gente pega a deferença
com o Candinho prá ajudá comprá a gasulina. Invés de drumi na jardinera
cumo tá cumbinado, oceis drome lá nas iscada da igreja.
Às duas horas da manhã chegou o dentista. Pica-Pau, com um lado do
rosto com ligeira inchação, urrava de dor em um dos quartos da pensão.
Levaram-no com todo carinho ao gabinete. Dr. Nereu vestiu o jaleco branco
e enquanto aguardava a esterilização dos equipamentos mandou o Pica-Pau
sentar-se na cadeira, abrir a boca e mostrar o dente que doía tanto.
Pica-Pau abriu a boca, tirou uma bolinha de gude que estava entre a
bochecha e os dentes fingindo a inchação e, com a outra mão, puxou as
duas dentaduras que usava, apontando para um molar e falando ao dentista:
– É esse danado aqui, doutô. Dá um jeito nele! Já num tô güentano mais!!!
Não deu outra: arrancaram o Pica-Pau da cadeira a tapas e lhe deram
a maior surra! O presidente do Jairópolis, mais agitado que nunca, ainda
ameaçou:
– Nois num vai ti matá agora purquê cê tem qui jugá amanhã, seu muleque.
Mais ocê num vai visti nunca mais a camisa do grorioso Jairópolis! E
se sua cara aparecê na cidade nois te quebra no pau, seu safado de uma
figa! Some daqui, sô (e soltou um palavrão).
E, a partir daí, ninguém mais viu o Pica-Pau em Jairópolis. Segundo
foi comentado, a sua atitude fora premeditada: é que ele estava envolvido
com uma das professoras de Cecilândia e procurava um motivo plausível
para se escafeder da região. Prova é que, meses depois ela deu à luz
um gracioso bebê, o Piquinha, que, dezoito anos mais tarde, se destacava
como um bom jogador de bola e de uma malandragem tal que fazia lembrar
o velho palhaço!
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