Há muito tempo não via o Zé Facão. Além de primo distante o Zé Facão
foi meu colega do 4º ano de Dª Anésia no Grupo Escolar “Cons. Afonso
Pena”, lá pelos idos de 1943. Filho da Ordália e do Zulmiro, o “Engenheiro”
da Prefeitura, Zé Facão também era companheiro no juvenil do Prof. Inar,
um time de futebol que ninguém sabia se era bom pois nunca jogava. Treinava
todos os domingos e era só isso.
Gosto muito do Zé Facão. Dia desses encontrei-me com ele e depois de
“algumas” com torresmo num boteco na Av. Dom Cirilo e ao relembrar nosso
tempo de juventude, o Zé Facão, fixou o olhar no prédio desativado da
Fábrica, disse:
– Olha, João, outro dia estive rememorando com saudade como era a Paraopeba
de nosso tempo de menino. Todo mundo conhecido, havia mais confiança,
mais solidariedade, mais amizade entre as pessoas. Todo mundo socorria
todo mundo. Não sou saudosista não, mas a cidade cresceu muito e ficou
meio selvagem. Olha lá, por exemplo, o prédio da fábrica. A troco de
algum lucro a mais, fecharam a indústria e mandaram todo mundo embora.
Não quiseram nem saber das dificuldades dos operários. Nem um pingo
de solidariedade com os mais pobres. Fecharam o portão, puseram as chaves
no bolso e pronto.
– Mas é assim mesmo, Zé. É a globalização em marcha. Fecham a fábrica
daqui mas abrem outras mais modernas em Pirapora.
– As de Pirapora, segundo estou informado, quase não têm empregados.
Os computadores e robôs são os melhores colaboradores. Plugam uns cabos
aqui, botam uma gotinha de óleo ali e tudo funciona. No fim do mês,
pagamento somente à Cemig e ao posto de gasolina da esquina.
– É Zé, eu quero saber é pra quem esse pessoal vai vender tecidos daqui
a algum tempo. Computador e robô, além de não terem família, trabalham
pelados. Nem eles usam os produtos que fabricam. E o povo não tem com
o que comprar nada pois o emprego, de uma forma geral, lhe foi subtraído
pela máquina.
– Mas deixa isso pra lá, Zé. Bom mesmo era no nosso tempo. Cê lembra
que até os sobrenomes das pessoas raramente eram usados para identificá-las?
Eles eram substituídos pelos prenomes dos pais, maridos, profissões,
protetores e até mesmo do lugar onde nasceram ou moravam.
– Interessante, Zé. Nunca havia pensado nisso. Hoje, nem pelo nome
as pessoas são identificadas. Somente pelos números. A cidadania desapareceu
por completo. É número no banco, na Receita, na Prefeitura, na Justiça
Eleitoral, na Cemig, na Copasa, no INSS, na Telemig, na Secretaria de
Segurança, na casa em que você mora, em todo lugar. Exigência da modernidade,
do computador...
– Muito pouca gente sabia quem era Geraldo Moreira de Figueiredo, Maria
de Jesus Almeida, José dos Santos Silva, por exemplo. Mas todo mundo
conhecia o Geraldo do Lamindo, a Maricota do Antônio Marques, o Zé de
Nenê. Todos trazendo na identificação o nome de seus genitores ou de
seu cônjuge.
– E nessa linha, Zé, me lembro de vários pessoas que traziam orgulhosamente
consigo a identificação da qual você falou. Eram o Bernardo do Davi,
Pedro da Avelina, Zezico da Filó, Wilson do Aristides, Mariínha da Elvira,
Zé da Diogna, Leda do Zé Maia, Antônio Padeiro, Sebastiana do Sílvio,
Pedro do Elói, Quinto do Alcebíades, Maria do Zé Rim, Dolores do Alcides,
Geralda do Nonô, Joaquim do Sabino, Zé e Juvenal Barbeiro e muitos outros.
– Não podemos esquecer, João, do Zé do Padre, Toninho do Lulu, Dico
do João Pio, Geraldo do Embiruçu, Lia e Custódia do Lamindo, Gustavo
do Belo, Carlos e Maristela de Dª Anésia, Dudu do Portápio, Waldemar
de Maria Henriqueta, Quintino do Brejo, Zezinho do Mucambo, Zé do Dino,
Augusta e Cecília do Nenê, Waldemar do Cirilo...
– Pera aí, Facão. O Waldemar do Cirilo, foi, indiscutivelmente, uma
pessoa que viveu antes de seu tempo. Em termos de modernidade, deveria
viver agora. Aviador arrojado, possuía um “paulistinha” e nele fazia
as maiores acrobacias que meus olhos já viram em um avião tão frágil
e numa época tão sem recursos. Loopings, “folhas secas”, “parafusos”,
eram executados com a maior naturalidade e competência pelo nosso Waldemar.
Comerciante de cristal de rocha e quase sem outro meio de transporte
na ocasião, o Waldemar usava o teco-teco para se locomover. Nas regiões
de Montes Claros, Sete Lagoas, Corinto, Pirapora, Buenópolis, Diamantina,
era o rei dos ares. Descia e decolava em locais inacreditáveis, sob
quaisquer condições de tempo. Era um ás, muito superior aos da hoje
Esquadrilha da Fumaça, que têm aviões modernos, planos de vôo, escolaridade
e treinamento dirigidos e de primeira linha, pára-quedas presos às costas
e muita proteção e apoio terrestres. Waldemar não tinha nada disso não.
Era ele, o seu “paulistinha” e Deus protegendo os dois.
– É, João, eu conheci o Waldemar e me lembro também do dia em que ele
resolveu descer em Paraopeba. Você se lembra?
– Ah se me lembro! Foram feitos os preparativos para a descida lá no
alto do Cruzeiro. Naquela região plana, completamente desabitada na
época, foram arrancados os cupins e os tocos, cortada a vegetação mais
alta e entupidas as valetas feitas pela erosão. Apesar dos esforços,
a pista era simplesmente um pasto recém-roçado. Mas, para o Waldemar,
aquilo era um verdadeiro aeródromo. E lá pelas 9 horas de um dia de
sol apareceu o avião, vindo das bandas de Sete Lagoas. Waldemar fez
algumas evoluções sobre a cidade, alinhou o “bicho” e desceu. Ao tocar
no solo irregular houve alguns solavancos, pulos e inclinações da aeronave,
mas o Waldemar conseguiu, com toda capacidade, controlar o “paulistinha”,
sob espessa nuvem de poeira. Parecia que a população inteira da cidade
correra para o Cruzeiro para ver o avião. Gente curiosa, menino correndo,
cachorro latindo. Foi uma festa! Depois de alguns empurrões, consegui
chegar até debaixo das asas do avião. Fiquei um pouco decepcionado ao
ver que o seu revestimento, e também o da fuselagem, era de uma espécie
de encerado amarelo. Achava que aquilo só poderia ser de alumínio ou
outro material resistente qualquer e, por isso, valorizei ainda mais
a coragem do Waldemar. O aviador desceu, foi muito cumprimentado e se
dirigiu para casa de seus pais – Cirilo e Alice. Foram calçadas as rodas
do avião para que o vento forte da região não o deslocasse e a decolagem
foi marcada para as 2 horas. Cê também tava lá?
– Tava não, João, mas esse dia também foi inesquecível pra mim. Meu
pai, que você conheceu, o Zulmiro, era carroceiro da Prefeitura e não
gostava que, depois da aula, eu ficasse molecando pela cidade. Tinha
que acompanhá-lo depois do almoço, ajudando-o no que fosse possível.
Justamente no dia da descida do avião, teria que ser levado para um
açougue do Cedro um boi abatido no matadouro de Paraopeba. O transporte
seria efetuado na carroça própria para aquele tipo de mercadoria, puxada
pela Completa, aquela besta forte e um tanto arisca que só meu pai sabia
controlar. Fomos até a ponte do Matias, local do matadouro, pegamos
a mercadoria e subimos o morro em direção ao destino. Do alto do Cruzeiro,
cabeceira da pista, avistamos, a uns 200 metros, o avião cercado de
gente. Pedi ao meu pai e ele parou a carroça para que, mesmo de longe,
eu pudesse ver o aeroplano. Sem mais nem menos, porém, houve aquele
barulho forte de motor e o avião se afastou do pessoal, indo vagarosamente
para a outra extremidade da pista. De longe vi quando ele virou ao contrário
e o barulho foi aumentando. A poeira levantou-se atrás dele e a aceleração
foi a máxima. E lá vinha o “bicho”! A menos de 50 metros da nossa posição,
vi quando as extremidades da asa foram abaixadas e ele começou a decolar.
A Completa, já indócil, começou a bufar e, sem mais nem menos, quando
o avião passou a menos de 20 metros de nossas cabeças com uma ventania
danada, ela, de um solavanco, tomou o cabresto das mãos de meu pai,
deu meia volta e disparou de volta à cidade. Meu pai, assustado, caiu
dentro de uma valeta lateral e eu, como seu eventual auxiliar, me vi
na obrigação de fazer a mula parar. Saí correndo atrás da carroça e,
à minha frente, um punhado de cachorros que, não alcançando mais o avião,
aproveitaram o embalo e continuaram correndo e latindo atrás do outro
objetivo. Eu bem que fazia força: – Pára, Completa! Pára Completa!,
mas ela se distanciava cada vez mais. Num buraco, um solavanco maior
fez a portinhola traseira se abrir e as peças de carne começaram a cair.
A primeira foi a cabeça do boi com seus grandes chifres e olhos abertos
que ficou esparramada na poeira. Alguns cachorros mais esfomeados pararam
e começaram o banquete. A maioria, porém, e eu atrás gritando pela Completa,
continuou a correria. A direção da mula era o pasto da Prefeitura, lá
no Tabuleiro Pequeno. Na curva do Aurelão, devido à alta velocidade,
a carroça tombou e quebrou-se toda, esparramando por todo lado o que
ainda restava de carne em seu interior.
Presos à Completa só ficaram os dois varais laterais e, não se sabe
como, cravado nos ganchos, um dos quartos do boi. Com o peso menor a
besta, aumentou a velocidade, passando ao lado do campo do Paraopeba
e em frente à casa do Zé Branquinho, esbarrando resfolegante na porteira
do pasto com aquele quarto de boi quase todo dilacerado preso à traseira
e observada a uma distância segura pela matilha que a seguira. Nunca
mais alguma pessoa conseguiu se aproximar da Completa e, a partir daquela
data, começou a ser colocado em prática o plano de modernização da frota
municipal: foi adquirido da Prefeitura de Sete Lagoas um caminhão International,
com mais de 10 anos de uso, que substituiu todas as 4 carroças e 10
semoventes em atividade. Era a globalização que chegava a Paraopeba...
– É isso mesmo, Zé. Desde aquela época a máquina era soberana. Soberana
e desumana!... Não podemos reclamar da CCC. A globalização aqui foi
implantada já há muitos anos...
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(*) CCC - Companhia Cedro e Cachoeira
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