Pelas bandas da Fazenda do Funil, meio caminho entre Paraopeba e Vargem
do Paga Bem, à margem da estrada, morava o Geraldo de Souza, caboclo
bom, trabalhador, pai de seis ou oito filhos com Donana, esposa fiel
e dedicada que, com o marido, labutava o dia inteiro visando dar mais
conforto à família.
À margem do córrego, Dr. Guilherme, proprietário da fazenda, cedera
ao Geraldo um pedaço de terra para que fosse cultivada e lhe propiciasse
melhores condições de vida. Ali sempre vicejava ora uma roça de milho,
ora de arroz ou feijão, entremeadas de moitas de cana, pés de mandioca
e batata doce. No fundo da roça, margem do córrego, uma horta com várias
verduras e legumes plantados com alguma técnica, era o dodói de Donana.
Tudo muito bem tratado, capinado a tempo e colhido na época própria.
Era sempre uma beleza a roça e a horta. Pessoa econômica, conseguiu
juntar algum dinheiro e com ele, além de 5 vacas, adquirira ainda um
carro com 3 juntas de bois para fazer algum carreto quando a labuta
na roça o permitisse. Dr. Guilherme nunca se opôs que o gado pastasse
em seus domínios. Enfim o Geraldo de Souza levava uma vida acima da
média, em comparação com a dos vizinhos.
Certa noite, depois de um dia inteiro de trabalho duro, lá pelas tantas
da madrugada, Geraldo de Souza é acordado pelo latido nervoso dos cachorros
e o tropel de um cavalo em disparada.
– Pelo amor de Deus, sô Gerardo, me acode. Sou o Zé Candinha e venho
em paz.
Geraldo acendeu a lamparina, pegou a cartucheira dependurada perto
da janela, abriu a porta e já junto à porteira avistou o quase desfalecido
Zé Candinha sobre um resfolegante cavalo todo suado e quase caindo de
cansado.
Zé Candinha morava na Vargem do Paga Bem. Solteiro, tido como boa pinta,
valentão, era mais amigo do copo e das mulheres do que da enxada ou
do cabo do arado. Vivia com os pais já idosos e vários irmãos que não
aprovavam muito a sua conduta de vida mas não tinham como evitar as
suas proezas. Gostava de uma briga e andava sempre armado.
– Vamo descê, Zé.
– Perigoso, Nero, Chitinha, vai deitá!, ordenou Geraldo de Souza aos
ouriçados cachorros.
Zé Candinha abriu a porteira e de um pulo desceu do cavalo sem ao menos
amarrar a rédea nas réguas do curral. Estava tão nervoso que nem esperou
o convite para entrar. Foi logo se refestelando no banco da sala e deu
profundo suspiro de alívio.
– Qui foi, home? Qui aconteceu? Cê tá mais marelo qui ispiga de mio
e com a camisa toda moiada de suô. Donana, trás uma caneca de água com
açuca pro Zé Candinha!
– Ah! sô Gerardo. Acabei de passá o maió aperto de minha vida gorinha
mesmo. Mãe, como ocê sabe, anda meia perrengue. Onte, pela 4 hora da
tarde, ela teve uma recaída e mandou qui eu fosse na Vila repiti uns
remédio na farmácia do Zé de Nenê. O João Macaco, da fazenda do Arcide,
me imprestou um cavalo e eu fui com um pé pra vortá no outro. Tava muito
preocupado com a véia. Mas os remédio tinha que ser fabricado e eu porveitei
o tempo pra dar uma voltinha lá no cerrado e exprimentá uma pinga nova
que chegou no boteco do Pedro do Elói. Lembrei do remédio da mãe, vortei
na farmácia mas invés de pegá a estrada, fui tomá uma saidera no buteco.
Conversa vai conversa vem, quando assustei era mais de onze hora. Dispidi
do pessoal, apertei a barrigueira do animá e envinha em marcha picada
com o cavalo saino bem dos buraco da istrada, pois, como o sinhô tá
veno, é noite de lua cheia. E tava tão claro como de dia. Entremo no
Matão, cabecera do Açude, na fazenda do Rasgão. No lugá mais fechado,
onde tem aquele jatobá com as gaia caindo inriba da istrada, foi qui
a porca troceu o rabo. Por causa dos gaio dos pau, tava mais escuro
no lugá. O cavalo viu quarqué coisa e começou a rifugá. Apertei ele
nas ispora e ele começou a passá todo assustado. Justamente dibaixo
do gaio do jatobá foi qui aconteceu tudo. Sem mais nem meno, vi um vulto
caindo in riba de mim. Gritei pur Nossa Senhora do Carmo, firmei os
pé nos estribo e apertei as ispora mais ainda. O cavalo deu um pulo
pra frente e o que era caiu justamente em suas anca. Ele abaixou um
pouco com o peso, rapou de banda e eu, quase caino, garrei com a mão
isquerda na cabeça da sela e com a outra, num segundo, já puxei a minha
“sabará” de parmo e meio de fôia e dei o gorpe de lado, meio disiquilibrado.
Sinti que tinha furado aquela coisa, carquei até o cabo e num tentei
nem tirá a faca. O bicho qui tava garrado na anca do cavalo, deu um
bafo no meu cangote e sortou um miado qui a mata toda deve tê iscutado.
Pircibi a sua queda no chão e, de rabo de ôio, a quebradeira que fazia
na correria entre os ramo mais rastero num istrago danado. Ainda tentano
me iquilibrá na sela e com o cavalo in disparada só parei e oiei pra
trás quando vi sua portera. Era a danada da onça, sô Gerardo, que passava
toda lua cheia pelo Matão. Nunca aquerditei nela mais num passo sozinho
por ali nunca mais. Nem de dia!
– Donana, põe o Zeca na cama do Tião que o Zé Candinha vai recostá
um pouco na cama dele. Os galo já amiudou e agora mesmo o dia amanhece.
Aperpara dispois um café forte pro home qui ainda tá muito assustado.
Geraldo de Souza não estava acreditando muito na história do Zé Candinha.
Achava que algumas doses a mais de pinga tinham afetado seu discernimento.
Daí a pouco o dia amanheceu. Zé Candinha foi até o curral pegar o ainda
assustado animal para seguir viagem. Depois de algum trabalho, o cavalo
deixou se aproximar e, então, em suas ancas via-se seis sulcos profundos,
três de cada lado, na exata posição de quem procurara sustentação com
unhas possantes e não conseguira se segurar, abalado por algum ferimento
e escorregando para a traseira do animal em fuga.
A partir daí, ninguém mais nas redondezas disse ter visto a onça do
Matão e nem ouvido seus miados em noites de lua cheia!
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