A NOITE AO MEIO-DIA

 

– Bas noite... Vamo apiá... – Assim o Manoel da Silva Alvarenga Vasconcelos – nome aristocrático de uma pessoa muito humilde – recebeu o visitante desconhecido na porta de sua casa à noitinha, depois de um dia ensolarado e de calor sufocante de um mês do verão de 1947.

– Bas noite. Eu sou o Oswardo, qui todos trata de Nenê Macaco e vim aqui prá mode chamá ocê prá ajudá nois a dá a premera capina lá na minha roça no morro da Bocaina.

Suspendendo a lamparina à altura da cabeça para melhor visualizar o visitante, o Manoel, mais conhecido lá pelos lados da Fazenda do Algodão, de onde se mudara recentemente para a Vargem do Paga-Bem como Mané Murrinha, insistiu com o Nenê Macaco:

– Vamo apiá, sô Nenê. É só num arrepará na disarrumação da casa, pois nois chegô antonte e a Crarice ainda num teve tempo de arrumá todas as coisa no lugá. Mudança é um disarranjo danado.

– Vai deitá, Pirigoso – concluiu o Mané dando um chute no traseiro de um macilento cachorro preto que insistia em latir, estranhando a visita inesperada.

– Só late, mas num morde não, sô Nenê. Entra e fica à vontade.

– Pois é, sô Mané. Chegô a hora de fazê a premera capina lá na roça e tamo cum pouca gente esse ano. O Remundo Bigode disse que ocê é bão de inxada e é disso que tô pricisano...

– É, o cumpade Remundo é meu cunhicido antigo e inté primo longe de minha muié...

– Nois vai cumeçá na sigunda-fera e eu pago quatro mirréis pur dia, livre. Só qui o custume daqui é cumeçá o trabaio quando o sol nascê. Quando ele disaparecê lá atrás do morro das Cruzinha, nois vai simbora. A noite foi feita por Deus prá separá os dia e nois discansá prá pudê levantá mais animado e pegá no duro traveis. Quero avisá tamém qui ocê deve levá os cigarro já inrolado pois num gosto dos camarada ficá picano fumo e ajeitano paia na hora do sirviço.

– Tá cumbinado, sô Nenê. Na sigunda o sinhô pode contá cumigo. Amanhã já vô amolá a minha jacaré de libra e meia prá num fazê feio nos eito.

E na segunda-feira seguinte, antes do sol nascer, lá estavam cerca de 20 homens, todos prontos para iniciar a capina da roça. A plantação compartilhada de milho e feijão das águas era de grandes proporções para os conceitos locais. O morro da Bocaina que fazia parte dos terrenos do Alcides Cunha, era utilizado na base do arrendamento e o Nenê Macaco, em vista da dimensão avantajada de sua lavoura, era o único da região que não podia adotar o sistema de mutirão ou “troca de dia”, muito usado por todos os agricultores. Era a ocasião em que o pessoal recebia dinheiro vivo, propiciando a compra de roupas, remédios e algum acerto pendente nas vendas do João Pio, do Antônio Marques ou do Leonel Mota, lá em Paraopeba.

Na segunda semana de trabalho, foi que tudo aconteceu. Quarta-feira, céu azul sem nenhuma nuvem, calor forte, logo depois do almoço o tempo começou a escurecer.

– Será qui foi aquela sopa de bucho cum ora-pro-nóbis qui cumi onte de noite que tá me fazeno mal? – pensou o Joaquim Cara-Ruim – Minhas vista tá iscurecendo ou já tá ficano dinoite mesmo?

No eito ao lado, o Zé Manguara também estava achando esquisita a situação:

– Será qui Deus tá me castigano pur eu tê ficado iscundido atrás da moita de pita oiano as perna da Maria Preta quando vai buscá água lá na lagoa da Maria Bernada e levanta a saia arriba dos jueio prá ela num moiá? Minhas vista é boa e tô sintino agora qui ela tá meia nuviada... Perdoa eu, Santa Luzia!...

E o dia foi gradativamente escurecendo. Os passarinhos procuravam os ninhos, as vacas, lá em baixo no vale, tomavam o caminho do curral e até apareceram algumas estrelas no firmamento. Estava tudo muito esquisito e ninguém compreendia a razão do anoitecer tão prematuro.

– Todo mundo pára de capiná, gritou o Nenê Macaco, acocorado sobre um toco de angico.Tá muito iscuro e num quero qui seje cortado ninhum pé de mio ou de fejão inveis de mato.

Amedrontados os camaradas se reuniram junto a uma árvore e o João Caroba foi o primeiro a falar:

– Será o fim do mundo ou é São Pedro qui arresorveu diminuí os dia?

– Né nada disso não, disse o Raimundo Bigode, rezador fervoroso e benzedor competente. – Isso é castigo pelas marvadeza que os povo anda fazeno. Ocês num viu falá da guerra? Mataram muita gente e o Pai Eterno deve tê ficado nervoso... E tirando do bolso um terço, começou a rezar, pedindo a todos que o acompanhassem.

Antes que o terceiro terço fosse recitado, o dia começou novamente a clarear e o Nenê Macaco determinou que o serviço fosse reiniciado.

No sábado, na hora do acerto, lá estavam todos em volta da lata emborcada, usada para o transporte e depósito de água para o pessoal e que era improvisada como mesa de escritório pelo Nenê Macaco.

– Cirininho! Tá aqui 24 mirréis dos seis dia!

– Brigado, sô Nenê.

– Chico Preto! Tá aqui seu dinhero, discontado o litro de criosene e as 200 grama de fumo capuirinha qui ocê mandô trazé lá de Paraopeba. Vinte e um e quinhento. Tá certo?

– Tá, sô Nenê.

Buré, João Caroba, Rundungo, Cangaia, Remundo Bigode, Zé Preto, Zé Manguara, e assim todos iam sendo convocados a receber pelos dias trabalhados, até que foi chamado o último:

– Mané Murrinha! Tá qui vinte e quatro mirréis pelos seis dia.

– Tá certo não, sô Nenê.

– Pruquê? Seis dia a quatro mirréis, cumo combinamo, dá vinte e quatro mirréis...

– Cuntece qui num foi seis dia. Foi sete...

– Sete?

– Inhô sim. Quarta-fera nós teve dois dia. Foi o sinhô mesmo qui disse qui inquanto tivé sol é prá trabaiá e a noite é prá discansá e separá um dia do otro.

– Mais aquilo num foi noite...

– O céu num tinha ninhuma nuve, ficô tudo iscuro de repente e nois teve inté de pará de capiná. Foi noite mesmo. Se num foi, o sinhô deve ispricá o qui cunteceu ou intonces pagá eu mais um dia – concluiu o Murrinha.

Não tendo como explicar o que acontecera e para garantir a sua filosofia óbvia de que a “noite separa os dias”, Nenê Macaco teve de se curvar à situação e avisou a todos:

– Cumo eu só truxe o dinhero prá pagá só seis dia, na semana qui vem eu acerto coceis o dia a mais que nois teve na quarta-fera...

***

Excluídos o natural exagero e boa parte do “tempero”, naturais em narrativas desse tipo, justifica-se plenamente o apavoramento generalizado causado pela penumbra que envolveu a região em um dia claro do verão de 1947 em conseqüência do eclipse total do sol, cujo ponto de melhor observação foi a vizinha cidade de Bocaiúva. Em plena era da informática, internet, televisão, telefonia celular, muita gente acreditou que o mundo fosse acabar quando em 1999 foi amplamente divulgada a ocorrência do mesmo fenômeno da natureza, sobre o qual os astrônomos cronometraram até os segundos da incidência! Não é de se estranhar, portanto, a desinformação de um grupo de camponeses, há mais de 50 anos, quando o principal meio de abordagem e comunicação era o ainda hoje nosso usado “psiu”!

 

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