– Safado de
uma figa, vamo lá no dono do circo prá ver o que ele vai
fazer cocê...
E o Adolfo,
vulgo Apertadinho, devido ao costume de usar sempre camisas abotoadas
até o pescoço, foi subjugado pela lapela do seu inseparável
paletó de caroá branco, recebendo a ordem do empregado
do circo que o surprendera quando já se preparava para subir
as arquibancadas depois de ultrapassar a cerca de arame e passar por
baixo do pano que circundava o circo que fazia a sua estréia
em Água Boa.
– Então
ocê passô dibaxo do pano, hein seu pilantra? – vociferou
o Anastácio, proprietário do circo, que estava diante
de um espelho maquiando-se para entrar na arena como o palhaço
da troupe.
– Curiango,
marra o discarado no pé daquela mesa e vai lá na portaria
chamá o cabo Mamede prá levá o mardito prá
cadeia...
– Pelo amô
de Deus, sô Nastaço, deixa eu i simbora... Amanhã
cidinho eu trago o dinhero da entrada... Eu num posso sê preso
não! Num posso causá esse disgosto prá minha madrinha
Julieta que além de presidente do Apostolado foi quem me criô
indesde piquinininho. E o qui num vai dizê o padre Furgenço
quando vié no 3º dumingo celebrá a Santa Missa e subé
qui eu, seu sacristão e incarregado da limpeza da capela, foi
preso?
Um tanto condoído
da situação e vislumbrando a solução de
um problema, o dono do circo levou o Apertadinho para o fundo do trailer
que servia de camarim e disse-lhe em tom coloquial:
– Eu tenho
uma proposta prá ti fazê. Cumo ocê já viu
nos cartaz do circo, nós vai apresentá no sábado
qui vem um ligítimo lião africano. Nois num tem bicho
ninhum. Só aquele coro qui tá ali pindurado e eu sempre
pago arguém prá visti ele e fingi de lião. Se ocê
aceitá a incumbença de bancá o animá pode
inté assisti o espetaco de hoje das cadera e dispois de amanhã
aparecê prá nóis cumeçá os trenamento...
É pegá ou sê preso...
Não
havia alternativa para o Apertadinho. Aceitou a proposta do Anastácio.
Na segunda-feira começaram os ensaios:
– Fica in pé
só de carção qui eu vô te infiá o
coro do bicho. Dispois bota as mão no chão e dá
uns passo prá frente, arrecoa, dá uns sartinho e fica
sempre de cabeça arta. Quando aquela luzinha vremeia lá
no canto acendê, ocê abre a boca e pro meio dessa burrachinha
de cama-de-ar qui vai sê inlaçada no seu quexo a boca do
lião tamém abre prá impatá com o urro da
fera qui é feito cum disco lá nas cuxia. Nois vai marrá
umas paia no seu trazero e na sua barriga prá fazê uns
enchimento pois ocê é muito mirradinho e pricisa parecê
qui o animá é muito bem tratado.
Nos dias seguintes
o Apertadinho voltava para fazer os mesmos exercícios. Não
estava muito seguro do papel mas o recuo implicaria na reversão
da decisão do dono do circo em não denunciá-lo
ao chefe do destacamento e ele ser obrigado a conviver com o Miltão
Vinte e Cinco, único preso na cadeia local e que estava aguardando
julgamento na sede da comarca, acusado de haver estuprado uma menina
de 8 anos na zona rural do lugarejo.
O Miltão
era um indivíduo alto, muito forte, que trajava constantemente
um calção roxo com bolinhas salmão, deixando à
vista o seu negro tórax onde alguns fios encaracolados faziam
companhia à espessa barba e cabeleira preta encarapinhada, matizada
de amarelo, depositária que era de camadas de poeira que se levantava
da rua lateral à cadeia quando da passagem de algum veículo.
Quanto ao apelido Vinte e Cinco, uns diziam ser a sua idade; outros,
o diâmetro de seus bíceps retezados; alguns achavam que
era a metade do número de sua alpercata; mas a maioria afirmava
ser a medida aproximada de uma das partes de sua anatomia.
– Amanhã,
no disfile do acumpanhamento do paiaço pelas ruas, nois vai fazê
a prova difinitiva de seu jeito prá lião – disse o Anastácio
ao Apertadinho após o treino da sexta-feira.
– Ocê
vai intrá na jaula qui a carretinha vai puxá. Fica deitado,
com a cabeça in pé qui nem o lião do cinema e quando
a luzinha vremeia acendê, ocê abre a boca, fingindo urrá.
Os arto-falante faz o baruio.
Até
que foi bem o teste nas ruas. Desempenho razoável no sincronismo
com o som do amplificador e porte aceitável durante o desfile.
No dia seguinte,
circo lotado, a expectativa toda era para a apresentação
do leão. Na última parte, depois de alguma espera, foi
colocada na arena uma grade circular com cerca de três metros
de altura e quatro de diâmetro e no seu interior o domador brandia
um chicote e falava das habilidades do leão que dizia obedecer
cegamente as suas ordens. Pouco depois uma jaula foi encostada à
portinhola da grade e de lá saiu o Apertadinho, depois de alguma
resistência pré-estabelecida, e, sob o comando do domador,
começou a fazer o seu número. Subia e descia de uma cadeira,
corria em círculos, ficava de pé e urrava nervoso ao estalar
do chicote e ao ver acesa a luzinha vermelha.
No grande final,
estava prevista a ultrapassagem do leão pelo círculo de
fogo. Acendida a estopa embebida em gasolina, o Apertadinho tomou distância,
correu e saltou tentando ultrapassar a barreira incandescente. Contudo,
não calculando bem o salto, atingiu com a cabeça a parte
superior do aro sustentado pelo domador por um longo cabo de madeira
que escapuliu de suas mãos pelo impacto, anelando-se ao pescoço
do leão e incendiando a sua juba.
Quando pressentiu
a gravidade da situação, o Apertadinho correu para o lado
do domador na esperança de socorro, mas este também apavorado
alcançou a portinhola da grade, por ela escapando, acompanhado
de perto pelo leão em chamas que tentava fugir do interior do
circo e atirar-se na pequena fonte que existia na praça. Para
isso teria que ultrapassar a tumultuada platéia e já com
o fogo atingindo também as palhas do enchimento de seu traseiro,
aos pinotes alcançou a portaria, deixando atrás de si
algumas pessoas chamuscadas.
Aliviado pelo
contato com as águas poluídas da pequena represa, o Apertadinho
começou a despir-se da pele do leão para tentar fugir,
mas foi abordado pelo cabo Mamede e por seu auxiliar, o soldado Pedro
da Bilota que o perseguiam desde o circo.
– Ah! Intão
é ocê, Apertadinho? Inganano o púbrico e ponhano
em risco a sigurança dos cidadão! Teje preso!
Depois de haver
sido levado à farmácia onde não foi constatada
nenhuma queimadura mais grave os militares conduziram o Apertadinho
à prisão.
Miltão
desligou o rádio de pilhas que trazia junto à orelha direita,
esfregou as mãos, deu uma lambida nos grossos lábios e
num sorriso um tanto maroto deixando aparecer todos os seus quatro nicotinados
dentes, exclamou ante o olhar angustiado do novo companheiro:
– Até
qui infim vou tê uma cumpanhia! Vamo trocá idéia
a noite inteira, né sapecadinho?
O derradeiro
pedido de clemência do Apertadinho foi bruscamente rejeitado pelo
cabo Mamede:
– Num tem jeito
não! Ocê cometeu duas infração: farsidade
ideológica e provocação de tumurto. O doutô
delegado vem dispois de amanhã e pode dicidí o seu caso.
Até lá ocê fica aí com o Mirtão.
Considerando
os bons antecedentes e atendendo aos pedidos de Dª Julieta, o delegado
não abriu inquérito e ordenou a liberação
do preso.
Entretanto,
a partir da convivência com o Miltão na cadeia, houve uma
mudança radical: o Apertadinho passou a ser conhecido na localidade
como Adolfo Alargadinho.
Francamente,
não sei a razão...
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