MILTÃO VINTE E CINCO

 

– Safado de uma figa, vamo lá no dono do circo prá ver o que ele vai fazer cocê...

E o Adolfo, vulgo Apertadinho, devido ao costume de usar sempre camisas abotoadas até o pescoço, foi subjugado pela lapela do seu inseparável paletó de caroá branco, recebendo a ordem do empregado do circo que o surprendera quando já se preparava para subir as arquibancadas depois de ultrapassar a cerca de arame e passar por baixo do pano que circundava o circo que fazia a sua estréia em Água Boa.

– Então ocê passô dibaxo do pano, hein seu pilantra? – vociferou o Anastácio, proprietário do circo, que estava diante de um espelho maquiando-se para entrar na arena como o palhaço da troupe.

– Curiango, marra o discarado no pé daquela mesa e vai lá na portaria chamá o cabo Mamede prá levá o mardito prá cadeia...

– Pelo amô de Deus, sô Nastaço, deixa eu i simbora... Amanhã cidinho eu trago o dinhero da entrada... Eu num posso sê preso não! Num posso causá esse disgosto prá minha madrinha Julieta que além de presidente do Apostolado foi quem me criô indesde piquinininho. E o qui num vai dizê o padre Furgenço quando vié no 3º dumingo celebrá a Santa Missa e subé qui eu, seu sacristão e incarregado da limpeza da capela, foi preso?

Um tanto condoído da situação e vislumbrando a solução de um problema, o dono do circo levou o Apertadinho para o fundo do trailer que servia de camarim e disse-lhe em tom coloquial:

– Eu tenho uma proposta prá ti fazê. Cumo ocê já viu nos cartaz do circo, nós vai apresentá no sábado qui vem um ligítimo lião africano. Nois num tem bicho ninhum. Só aquele coro qui tá ali pindurado e eu sempre pago arguém prá visti ele e fingi de lião. Se ocê aceitá a incumbença de bancá o animá pode inté assisti o espetaco de hoje das cadera e dispois de amanhã aparecê prá nóis cumeçá os trenamento... É pegá ou sê preso...

Não havia alternativa para o Apertadinho. Aceitou a proposta do Anastácio. Na segunda-feira começaram os ensaios:

– Fica in pé só de carção qui eu vô te infiá o coro do bicho. Dispois bota as mão no chão e dá uns passo prá frente, arrecoa, dá uns sartinho e fica sempre de cabeça arta. Quando aquela luzinha vremeia lá no canto acendê, ocê abre a boca e pro meio dessa burrachinha de cama-de-ar qui vai sê inlaçada no seu quexo a boca do lião tamém abre prá impatá com o urro da fera qui é feito cum disco lá nas cuxia. Nois vai marrá umas paia no seu trazero e na sua barriga prá fazê uns enchimento pois ocê é muito mirradinho e pricisa parecê qui o animá é muito bem tratado.

Nos dias seguintes o Apertadinho voltava para fazer os mesmos exercícios. Não estava muito seguro do papel mas o recuo implicaria na reversão da decisão do dono do circo em não denunciá-lo ao chefe do destacamento e ele ser obrigado a conviver com o Miltão Vinte e Cinco, único preso na cadeia local e que estava aguardando julgamento na sede da comarca, acusado de haver estuprado uma menina de 8 anos na zona rural do lugarejo.

O Miltão era um indivíduo alto, muito forte, que trajava constantemente um calção roxo com bolinhas salmão, deixando à vista o seu negro tórax onde alguns fios encaracolados faziam companhia à espessa barba e cabeleira preta encarapinhada, matizada de amarelo, depositária que era de camadas de poeira que se levantava da rua lateral à cadeia quando da passagem de algum veículo. Quanto ao apelido Vinte e Cinco, uns diziam ser a sua idade; outros, o diâmetro de seus bíceps retezados; alguns achavam que era a metade do número de sua alpercata; mas a maioria afirmava ser a medida aproximada de uma das partes de sua anatomia.

– Amanhã, no disfile do acumpanhamento do paiaço pelas ruas, nois vai fazê a prova difinitiva de seu jeito prá lião – disse o Anastácio ao Apertadinho após o treino da sexta-feira.

– Ocê vai intrá na jaula qui a carretinha vai puxá. Fica deitado, com a cabeça in pé qui nem o lião do cinema e quando a luzinha vremeia acendê, ocê abre a boca, fingindo urrá. Os arto-falante faz o baruio.

Até que foi bem o teste nas ruas. Desempenho razoável no sincronismo com o som do amplificador e porte aceitável durante o desfile.

No dia seguinte, circo lotado, a expectativa toda era para a apresentação do leão. Na última parte, depois de alguma espera, foi colocada na arena uma grade circular com cerca de três metros de altura e quatro de diâmetro e no seu interior o domador brandia um chicote e falava das habilidades do leão que dizia obedecer cegamente as suas ordens. Pouco depois uma jaula foi encostada à portinhola da grade e de lá saiu o Apertadinho, depois de alguma resistência pré-estabelecida, e, sob o comando do domador, começou a fazer o seu número. Subia e descia de uma cadeira, corria em círculos, ficava de pé e urrava nervoso ao estalar do chicote e ao ver acesa a luzinha vermelha.

No grande final, estava prevista a ultrapassagem do leão pelo círculo de fogo. Acendida a estopa embebida em gasolina, o Apertadinho tomou distância, correu e saltou tentando ultrapassar a barreira incandescente. Contudo, não calculando bem o salto, atingiu com a cabeça a parte superior do aro sustentado pelo domador por um longo cabo de madeira que escapuliu de suas mãos pelo impacto, anelando-se ao pescoço do leão e incendiando a sua juba.

Quando pressentiu a gravidade da situação, o Apertadinho correu para o lado do domador na esperança de socorro, mas este também apavorado alcançou a portinhola da grade, por ela escapando, acompanhado de perto pelo leão em chamas que tentava fugir do interior do circo e atirar-se na pequena fonte que existia na praça. Para isso teria que ultrapassar a tumultuada platéia e já com o fogo atingindo também as palhas do enchimento de seu traseiro, aos pinotes alcançou a portaria, deixando atrás de si algumas pessoas chamuscadas.

Aliviado pelo contato com as águas poluídas da pequena represa, o Apertadinho começou a despir-se da pele do leão para tentar fugir, mas foi abordado pelo cabo Mamede e por seu auxiliar, o soldado Pedro da Bilota que o perseguiam desde o circo.

– Ah! Intão é ocê, Apertadinho? Inganano o púbrico e ponhano em risco a sigurança dos cidadão! Teje preso!

Depois de haver sido levado à farmácia onde não foi constatada nenhuma queimadura mais grave os militares conduziram o Apertadinho à prisão.

Miltão desligou o rádio de pilhas que trazia junto à orelha direita, esfregou as mãos, deu uma lambida nos grossos lábios e num sorriso um tanto maroto deixando aparecer todos os seus quatro nicotinados dentes, exclamou ante o olhar angustiado do novo companheiro:

– Até qui infim vou tê uma cumpanhia! Vamo trocá idéia a noite inteira, né sapecadinho?

O derradeiro pedido de clemência do Apertadinho foi bruscamente rejeitado pelo cabo Mamede:

– Num tem jeito não! Ocê cometeu duas infração: farsidade ideológica e provocação de tumurto. O doutô delegado vem dispois de amanhã e pode dicidí o seu caso. Até lá ocê fica aí com o Mirtão.

Considerando os bons antecedentes e atendendo aos pedidos de Dª Julieta, o delegado não abriu inquérito e ordenou a liberação do preso.

Entretanto, a partir da convivência com o Miltão na cadeia, houve uma mudança radical: o Apertadinho passou a ser conhecido na localidade como Adolfo Alargadinho.

Francamente, não sei a razão...

 

 

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