Pouca gente sabe quem foi Zé Mutengo. Talvez até ele mesmo desconhecesse
suas origens e o nome verdadeiro, de onde viera e como foi parar em
Paraopeba. Pela cor fortemente negra de sua pele, pela idade já um tanto
avançada, pelo trabalho humilde que exercia, possivelmente Zé Mutengo
fora descendente muito aproximado de escravos. Pequena estatura, cabeça
sempre baixa protegida pelo inseparável chapéu de palha, gestos nervosos,
olhar de sofrimento e resignação com o que lhe reservara a vida, cumpria
com dedicação talvez a única oportunidade de trabalho que se lhe apresentara
na existência: era coveiro do Cemitério Municipal.
Sim. Zé Mutengo era coveiro. E coveiro competente. Conhecia como ninguém
todos os segredos do cemitério. Sabia onde poderia cavar novas sepulturas
sem o risco do “atropelo” de cadáveres ainda não devidamente “curados”
no seu dizer. Previdente, apesar da demanda não ser muita, Zé Mutengo
sempre conservava duas ou três sepulturas de reserva, prontas a ser
usadas caso houvesse mais procura que o trivial. Levava sua vida costumeira,
do cemitério ao barraco ali por perto, passando obrigatoriamente pelo
boteco do caminho onde uma talagada sempre abria o apetite para o enfrentamento
da “gororoba” que ele mesmo prepararia, comendo a metade e reservando
a outra na marmita para o almoço do dia seguinte.
Mas Zé Mutengo era um filósofo. Tinha suas manias e modos como encarar
os fatos e as pessoas na despedida trágica do enterramento. Sofria quando
tinha que sepultar um “anjinho”. Gostava muito de crianças e não compreendia
como eram chamadas tão cedo à outra vida. Às vezes até chorava ao colocar
as primeiras pás de terra sobre os caixões brancos depositados no fundo
da sepultura. Mas, o quê fazer? A vida era aquela e ele não seria capaz
de modificar seu rumo.
Não gostava também de enterrar membros de associações religiosas. Vestimentas
brancas com faixas e fitas azuis de Filhas de Maria, símbolos dos membros
do Apostolado de Oração e principalmente opas roxas dos Adoradores do
Santíssimo ao redor da sepultura no último adeus a seus membros, davam
ao Zé Mutengo um sentimento de culpa, como se ele fosse o responsável
pela passagem daquela pessoa em direção ao desconhecido. As orações,
os cânticos e, às vezes, até a presença do padre ao ato entristeciam
e muito o Zé Mutengo. Cumpria contudo seu dever sem exteriorizações
de sentimentos constrangedores.
Zé Mutengo, porém, se divertia interiormente era com o enterro dos
figurões. Sabia ele que as demonstrações de desespero exibidas à frente
da sepultura eram, via de regra, de uma hipocrisia revoltante. Até o
terço que entrelaçava as mãos inertes do finado sobre o peito demonstrando
religiosidade, fora usado somente na primeira comunhão. Nunca mais!
Tinha certeza que as demonstrações de histeria ali exibidas eram tão
falsas quanto as lágrimas que desciam pelo rosto dos circunstantes.
A quantidade e volúpia dos soluços eram proporcionalmente comparados
ao volume da possível fortuna que o finado deixava. Pedidos para que
o caixão fosse aberto várias vezes para o último adeus de parentes retardatários,
desmaios de viúvas estrategicamente posicionadas à frente de “compadres”
já preparados para o devido “amparo” no momento e depois, era uma festa
para o ego do Zé Mutengo. Às vezes, tinha até discursos feitos pelos
oradores de sempre e as mesmas palavras e gestos repetidos em todos
os enterros. Tudo “um saco”!
Mas, mãos calejadas sobrepostas sobre o cabo liso de sua pá, chapéu
respeitosamente debaixo do braço, Zé Mutengo esperava pacientemente
o fim da solenidade. Sabia ele que as únicas coisas autênticas que havia
na ocasião eram o suor que, já em bicas, descia pelo seu rosto e a vontade
cada vez maior de saborear a sua costumeira “canjibrina”, à saída.
E a vida ia correndo.
Um dia, o Zé Mutengo veio acompanhado. Veio não. Foi trazido. Zé Mutengo
morrera. Iria usar como previra sempre para os “extras” uma sepultura
de reserva. E, ironicamente, foi enterrado em cova cavada por ele próprio!
E houve festa na recepção de sua alma no céu. Pena que na ocasião ainda
não houvesse o “Jornal de Paraopeba” para que a Mercês Maria Moreira
reportasse como tão bem sabe fazer, a recepção que o Zé Mutengo foi
alvo no plano mais elevado!
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