Final da década de 40. Tarde de domingo. Sol de “arrebentar mamona”.
Sorveteria do Zé Maia na Praça Cel. Caetano, em frente ao coreto que
existe ainda hoje. Lu da Carmem, caboclo espadaúdo, bom de briga e de
golo ouvia no “possante oito válvulas” da Pilot o seu querido Fluminense
jogar contra o Vasco da Gama, no Rio de Janeiro. Solitário, ocupava
uma cadeira junto à mesinha de madeira com o rádio preso a uma prateleira
sobre sua cabeça. Era só atenção na narração do Jorge Cury, na Rádio
Nacional. Formou-se um semi-círculo à sua volta. Jovens sem dinheiro
e sem alternativas, “sapos” viciados das partidas de sinuca do Geraldinho
do Sô Bernardo resolveram infernizar a solidão do Lu.
– Fluminense de nada! Tem “caixa” prá cinco! Gijo vai “frangar” para
a semana inteira! Pedro Amorim está “engarrafado” pelo Argemiro! Spinelli,
Bigode, Tim, Raul Carreiro são de nada. Craques mesmo são Lelé, Isaías,
Rafanelli, Barbosa, Ademir, Jair, Chico!
Lu, impassível, olhava fixamente para o nada, ignorando por completo
as gozações dos circunstantes. De repente, gol do Vasco. Recrudesceram
as provocações. Flamenguistas, botafoguenses e principalmente vascaínos
vibraram a uma só voz.
– “Pó de arroz” fedido! Aposto 5 picolés e dou 3 gols de vantagem!
A “lavagem” vai ser de mais de 8!
Lu continuava caladão em sua cadeira.
Segundo tempo. Carreiro centra da esquerda e Pedro Amorim marca de
cabeça. Empate do Fluminense. Lu deu uma virada na cadeira e um suspiro
profundo que arrepiou o seu vasto bigode. Continuou quieto. Absolutamente
concentrado na narrativa do Cury.
Dez minutos para o jogo acabar. A platéia em torno do Lu diminuíra
um pouco mas ainda era bastante atuante. Pé de Chumbo, flamenguista
roxo, era o mais renitente. Eu, baixo e fraquinho, também dava meus
palpites, na fila da frente:
– Lelé vai desempatar do meio do campo! Ninguém vai segurar o Chico
numa “comprida”! Djalma vai “chapelar” o Bigode e marcar “de letra”!
Ataque do Flu. “Furada” espetacular do Rafanelli. “Ajeitada” do Tim.
“Canhonaço” do Carreiro! Gol do tricolor! 2x1. Virada sensacional!
Antes que o Cury acabasse de gritar o seu escandaloso goooooooool,
o Lu abaixou-se, pegou o pé da mesinha, ergueu-a no ar com a mão direita,
deu uma volta em torno de si mesmo e, ao tomar impulso para dar uma
“capinada” nos adversários, não viu mais ninguém! Não ficara um, meu
irmão! Ainda com a mesa erguida sobre a cabeça, perguntou para a assustada
Orlinda que observava a cena do interior do balcão:
– Uai, cadê os “home”?
O mais próximo, eu à frente, já dobrara a esquina da pensão do Aristides
Nascimento rumo à proteção covarde que só as pernas proporcionam!
Cinqüenta anos depois, o episódio se repete. Com outros personagens
e conotações mais sérias. Mas não deixa de ter a sua analogia. Quando
a CCC (*) “roda a baiana”, não ergue a mesinha
mas baixa a caneta e demite 2.300 operários a partir de 1990 (“Jornal
de Paraopeba”, fevereiro/98), os políticos que deveriam tentar reverter
a situação, não somente correm e dobram a esquina omitindo-se de um
confronto em que seus representados passam por tamanhas preocupações
como ainda, tenho certeza, se preparam para voltar às suas promessas
de ontem e pedirão “novo voto de confiança” em outubro próximo.
Na hora em que as aflições e as incertezas dos demitidos da indústria
se afloram, nem ao menos o famoso “apoio moral” dos políticos aparece.
Também pudera. Esses políticos em que muitos acreditaram andam muito
ocupados com seus problemas. Alguns podem estar esquiando em Aspem,
no Colorado, USA, descansando os dedinhos que tanto trabalharam na aprovação
das famosas reformas do governo, principalmente na da reeleição. Outros
se deliciando em Cancun, hospedados em hotéis paradisiácos e acompanhando
o saracotear dengoso das rebolativas veranistas seminuas. Alguns outros,
mais modestos, pescando lambari nos regatos encaichoeirados do interior
de Goiás no horário de expediente extraordinário do Congresso. Todos
assuntos da mais alta relevância! Só não tem importância os problemas
de uma comunidade que os colocou na Câmara Federal como seus representantes
e deles ganharam uma banana do maior tamanho e grossura na hora de sua
aflição.
– Uai, cadê os “home”?
Mas ao contrário dos adversários do Lu da Carmem, eles voltarão. Com
as mesmas palavras de ontem. Estenderão faixas, abarrotarão seus ouvidos
com sons estridentes de músicas baianas entremadas de frases feitas
e borrocarão seus muros com pichações e fotografias multicoloridas.
Falarão bonito no rádio e comparecerão à inauguração de uma pinguela
na Picada ou de uma cisterna no Embiruçu. Provavelmente irão até sua
casa. Tomarão de seu arrapadurado, fraco e frio café, elogiando-o e
cuspindo depois a rebarba, às suas costas. Elogiarão, e muito, a beleza
e a elegância de sua mulher mesmo que ela seja banguela, obesa e esfarrapada.
Seus filhos barrigudos, sem calça e descalços de sapatos e esperança,
serão as crianças mais robustas, saudáveis e inteligentes que já viram.
Sim, eles virão. Só não vieram para lutar na defesa de seus interesses.
E que interesses eram esses? Somente o de trabalhar e de dar o pão à
família. Direito que os destruidores de obras feitas e fracassados administradores
de gabinete estão lhes negando sob a justificativa de enxugamento econômico
de uma indústria que os Mascarenhas, há mais de 100 anos, souberam administrar
eficientemente e que meia dúzia teima em destruir. Fecham fábricas e
abrem bancos. Lucro fácil e, às vezes, até meio nebuloso. Nacional,
Bamerindus, Econômico etc., ainda estão sob suspeita. Hércules, nem
se fala...
Ah sim, os políticos virão... E com eles meia dúzia de baba-ovos, locais
ou importados, para tentar convencer que são realmente as vestais do
século atual e a aurora do próximo. Virão ainda os baderneiros da bandeira
vermelha e os que falam sem procuração em nome do Cristo, com propostas
mirabolantes, até de um pedaço do céu em troca de seu voto.
Façam como o Lu da Carmem. Não os botem para correr mas alfinete-os
com a sua indiferença. Do contrário, o Fluminense vai perder. E de goleada...
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(*) CCC - Companhia Cedro e Cachoeira, tecelagem.
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