O DUPLO ATROPELAMENTO NA AVENIDA

 

– Por trezentos e cinqüenta mil réis, tá fechado, disse o Chico Maurício, sentado na última régua do curral de sua Fazenda da Pedra Grande.

– Trezentos e trinta e não tem mais conversa, respondeu o Geraldo Cará, açougueiro de Paraopeba, que ali fora a fim de comprar a Princesa.

– Tá barato Geraldo, mas não tenho outro jeito. E o pagamento?

– Dez dias a contar de hoje.

– Negócio fechado, arrematou o Chico Maurício.

E assim estava traçado o destino da Princesa, vaca meio-sangue gir, de peso acima da média, nascida ali mesmo na fazenda e que era um verdadeiro “capeta”. Na primeira cria, nem o Dico, vaqueiro dos bons, conseguira chegar perto dela e do bezerrinho para tangê-los ao curral. Com chifres curtos, testa grande e uma violência extrema, a Princesa atacava até mesmo quem se aproximasse a cavalo. O jeito foi deixá-la por lá mesmo, sem que o leite fosse aproveitado. O bezerro cresceu, desmamou e nova barrigada da Princesa. Quando todos acreditavam que ela ficaria mais dócil, parece que piorou o seu temperamento. Brava e arisca, postava-se junto à cria, pronta para atacar qualquer um que se aproximasse. Não havia recurso. A solução seria a venda para o abate.

Já com o bezerro criado, a Princesa foi conduzida ao curral e lá presa junto com o gado “solteiro”, sendo negociada com o Geraldo Cará.

– E como é que você vai levar a vaca até Paraopeba? Vai ser muito perigoso. Vai ter que atravessar toda a cidade e a Princesa vai dar uma trabalhão danado...

– Deixa comigo, Chico. Se você me emprestar o Dico, levo ela hoje mesmo...

– Dico, gritou o Chico Maurício – ajuda o Geraldo Cará e vá com ele levar a Princesa até o matadouro em Paraopeba! Fica à disposição do homem!

– Sim senhor, sô Chico. É só dá tempo pra apartá a Princesa do resto do gado que tá aí no currá e arriá o Baio.

Geraldo Cará, traquejado na lida com outros animais do mesmo comportamento, mandou o Dico laçar a vaca, levá-la ao tronco e imobilizá-la. Não foi fácil. De cima da cerca do pequeno curral o Dico fez várias tentativas. Princesa, vendo-se ali sozinha, acuada, estava cada vez mais furiosa. Várias vezes tentou saltar a cerca, quebrando algumas réguas, mas foi finalmente dominada.

Com a vaca mais calma ou sentindo-se impotente para qualquer reação, Geraldo Cará desceu da cerca, pegou o focinho do animal, dobrou o seu pescoço, amarrou a parte superior da tapa em seus chifres e prendeu firme a parte inferior no focinho da “fera”. (Tapa é um pedaço de couro cru preso na cara do animal, tirando a sua vista frontal e deixando somente uma reduzida visão lateral).

– Solta ela, Dico, e vamos embora!

Com muito cuidado, o Dico tirou o laço da cabeça da Princesa e o cedém de suas patas. A vaca levantou-se balançando a cabeça, tentando inutilmente tirar a tapa e, sem reação mais violenta, foi encaminhada à porteira do curral e daí em direção a Paraopeba.

Apesar de várias trombadas e algumas quedas em buracos, vinha a Princesa sendo conduzida em marcha lenta e sem muitos transtornos pelos dois cavaleiros. Lá do alto da Av. Getúlio Vargas, em frente onde morava o Nemésio, o Geraldo Cará gritou com todas as suas forças:

– Olha a vaca brava, gente! Cuidado!

A Princesa assustou-se com o grito do Geraldo e passou a trotar com rapidez, descendo acelerada a avenida.

O Zé Miligido, mendigo com deficiência auditiva quase total, nesse momento, vinha descendo também a rua. O Luiz Rocha, ao fechar as portas da barbearia, prevenindo-se contra possível invasão do animal, pressentiu o perigo e gritou acenando para o Zé Miligido:

– Sai da rua, Zé. Olha a vaca!

O Zé, percebendo o aceno, tirou o chapéu e começou a responder sorridente:

– Bá tarde, sô Luiz! Cumo vai a Dª Vini...

Antes que ele acabasse de pronunciar a frase, houve o choque violento na sua retaguarda. Zé Miligido, que estava com um saco muito sujo às costas, aterrisou na poeira e, mais assustado que machucado, muito rápido, tentava se safar da situação.

A vaca, cada vez mais assustada, do trote passou ao galope e os cavaleiros, preocupados com o problema do Zé Miligido e para evitar outros acidentes à frente, também apertaram o passo. O cavalo do Dico, com a visão prejudicada pela poeira, não pode se desviar do Zé que já se levantara e tentava apanhar os canecos e latas vazias de goiabada que trazia no saco e que foram esparramados pelo chão. Outra pancada. O Zé literalmente voou e esborrachou-se três metros adiante, levantando nova nuvem de poeira.

Foi uma correria danada para socorrer os possíveis acidentados. O Dico estava com arranhões no cotovelo e o Zé Miligido com uma dorzinha na perna esquerda. Nada grave porém.

Aí o Neves, que assistira a toda a cena ao meu lado na porta do armazém do Antônio Marques, comentou orgulhoso:

– Olha, João, Paraopeba é uma terra diferente. Em todo lugar, atropelamento duplo é quando um elemento bate em duas pessoas ao mesmo tempo. Aqui não. Atropelamento duplo é quando dois elementos batem em uma única pessoa quase ao mesmo tempo. E, ainda por cima, para coroar, uma capotagem espetacular como foi a do cavalo do Dico! Lugar nenhum do mundo tem disso não!

– É, Neves, diferente e habitada por pessoas muito sérias. Jamais ouvi aqui alguma mentirinha por mais inofensiva que seja!

– É...

 

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