Certa época o governo empreendeu uma campanha para retirar os hansenianos
da comunidade em que viviam, proporcionando aos enfermos tratamento
mais adequado e evitando o contágio a que estavam sujeitas as pessoas
que com eles conviviam.
Havia muita resistência dos familiares dos doentes em cumprirem a determinação
devido às incertezas da eficácia do tratamento e ao sentimento de perda
daquele enfermo pois, na época, a hanseníase era incurável. Era o envio
da pessoa a um isolamento distante para que ali passasse os últimos
dias, preservando os familiares da contaminação do mal.
O recolhimento dos doentes era traumático. Havia sigilo absoluto da
força policial, quando era necessária uma operação, para o recolhimento
de um enfermo. Resistência de toda ordem: do enfermo, dos familiares,
da maioria dos vizinhos. A operação fracassava muitas vezes e, não raro,
a força bruta era empregada para que as ordens fossem cumpridas.
No povoado da Serrinha havia uma família com aparências do mal de Hansen.
Todos da casa eram retraídos, evitando que a notícia da doença pudesse
chegar ao conhecimento das autoridades responsáveis pelo assunto. Nem
mesmo os vizinhos mais próximos sabiam quantas pessoas viviam na casa
como, também, qual o seu meio de subsistência pois nunca se via algum
membro da família. Ninguém conhecia o chefe da família embora se soubesse
que ele existia pela evidência do nascimento anual de uma criança no
lar. O único momento que podia se ver a criança e sua mãe era no dia
do batizado. No mais, isolamento completo.
Mas os sanitaristas descobriram aquele segredo e montaram a operação
para o resgate do responsável pela família. Várias tentativas foram
feitas com visitas à casa por enfermeiros que nunca puderam passar do
portão. A resistência era absoluta. O jeito era a força policial que
pegaria o homem e o levaria até a estação de Tabocas onde, em vagão
especial para portadores do mal, seria enviado até a Colônia Santa Isabel.
Estabelecidos os planos sob o maior sigilo, dirigi-ram-se dois soldados
e um enfermeiro até a Serrinha para levar o doente.
Naquele dia, na pacatez do lugarejo, a Mariana e a Das Dores, amigas
inseparáveis, já dobrando a idade dos 40, calmamente recolhiam lenha
em um cerrado recém desmatado perto de suas residências. Muito alegres,
ao passo que quebravam os gravetos, cantavam uma marchinha de carnaval
num dueto desafinado mas com muita empolgação. Sonhando ainda com um
casamento, desfilavam sempre os seus requebros nas idas ao Cedro, nunca
faltando às missas domingueiras das 10, na esperança de que surgisse
alguém interessado num romance.
Os soldados, armados de fuzil para demonstrar maior poder de persuasão,
foram chegando, passando pelo portão e invadindo a casa do doente. Alvoroço
total. Cachorro latindo, galinha voando para todos os lados, menino
chorando. Foi uma zorra geral. Acontece que o alvo da busca era um negão
de seus 1,90 de altura, forte feito um touro, e que estava tomando banho
naquele momento. Não teve tempo para nada. Pulou a janela e, peladão,
saiu em desabalada carreira, seguido dos policiais, do enfermeiro e
de um bando de cachorros justamente em direção ao cerrado onde estavam
a Mariana e a Das Dores colhendo a lenha. Absorvidas com o cântico,
elas só notaram o que estava acontecendo quando a correria estava a
menos de 50 metros de distância.
Quem viu primeiro foi a Mariana que gritou apavorada:
– Corre Dasdô qui o capeta fugiu dos inferno e, atrás dele tentano
pegá, tão os arcanjos Gabriel e Miguel com suas espadas disimbainhadas,
cumpanhados de Santa Rita e dos dragões de São Jorge.
– Qui capeta qui nada Mariana. Num vê qui aquilo é mula-sem-cabeça
qui os sordado tá quereno pegá. Nós tá na coresma. Num tá veno as orêia
dela cumo tá abanano pra lá e pra cá?
– E aquilo é lugá de orêia, Dasdô?
– Mula-sem-cabeça, Mariana, tem orêia em quarqué lugá e essa tem onde
cê tá veno.
– Cruz credo! Avi Maria! Vamo virá de costa e corrê pra casa!
Afinal pegaram o Bastião, nome do negão, e o levaram para a Colônia
Santa Isabel. Foram feitos exames nos outros membros da família e constatou-se
que a doença não havia afetado nenhum deles. A partir daí aos poucos
houve a reintegração com a comunidade. Os meninos foram para a escola
e todos os vizinhos auxiliavam na manutenção da casa.
Passaram-se três anos.
Um belo dia, olha quem aparece na Serrinha? O Bastião. Terno branco,
chapéu de lebre, botinas chiadeiras. Até perfumado ele estava. Sem nenhuma
seqüela. Era outra pessoa. Desinibido e falante, procurou o boteco de
Zé Canastra e foi logo dizendo:
– Tô aí tra veis. Vortei pra casa são da doença e da cabeça. Apareceu
lá na Colônia um remédio novo que é tiro e queda. Tomei ele pur 2 ano
e o doutô dispois dos exame da semana passada mandou eu simbora. Os
atestado tão aqui, ó. Do corpo ele me sarô e da cabeça uma psicoga me
fez vivê tra veis. E pra gradecê todo mundo a consideração que tiveram
com minha muié e meus fio inquanto tive fora, vou dá uma festinha lá
em casa no sábado. Todo mundo tá cunvidado.
E no sábado seguinte o forró tava armado. Sanfoneiro veio das Lages.
Pandeirista e violeiro do São Bento. A animação era geral.
Das Dores e Mariana eram as mais desinibidas. Não perdiam uma contra-dança.
Bolero, samba e até batuque era com elas mesmas. Rolava uma cachacinha
e tira-gosto de torresmo e muela de galinha não faltava.
Lá pelas tantas Mariana, a mais assanhada das duas donzelas, aproximou-se
do Bastião em um canto da cozinha e lhe disse.
– Bastião, eu quero ti pidi discurpa pur aquele dia em que ti pegaro
lá no cerrado. Eu e a Dasdô fiquemo muito assustada na hora mas dispois
acarmemo e temo inté sodade do qui vimo.
E, matreiramente, olhando com um rabo de olho para o Bastião, com voz
melosa concluiu:
– ... e nois cuntinua buscando lenha lá no cerrado, viu?...
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