E lá no quadro de avisos da portaria da fábrica estava escrito: “Amanhã
será tirada fotografia dos operários para a confecção de crachá”.
– Cê sabe o que é crachá, Maneco? – perguntou intrigado o Zé Justino.
– Sei não. Só sei o que é fotografia. É retrato. Mas deve ser coisa
boa. A palavra é bunita mas é discunhicida...
– Iscuta aqui, Filó, disse o Zé ao chegar em casa. Enquanto eu ingraxo
os sapato, ocê aperpara o terno de casamento. Dá uma escovada nele e
passa o ferro também na camisa e gravata que tá lá na mala. Amanhã vou
tirá retrato lá na fábrica pra fazer uns tá de crachá. Num sei o quê
qui é isso não, mas quero tá bem arrumado. Retrato é coisa séria. Põe
na rôpa umas gota daquele perfume qui a Vicentina trôxe procê lá do
Paraguai, qui é pra tirá a catinga da nifetalina. Imbruia tudo no jorná,
bota um sabonete dentro que eu vou deixá na portaria e, di tardi, dispois
do banho, eu vô visti pra tirá o retrato.
– Dá o nó na gravata pra mim, Maneco! Sou o terceiro da fila e gorinha
mesmo eles mi chama! Oia si o lencinho da argibeira tá legal!
Fotografia tirada, recebeu do impertigado chefe da seção a recomendação:
– Tá aqui a sua senha. Daqui a 10 dias pegue o crachá na portaria.
Dia seguinte, ninguém mais poderá trabalhar sem ele. Ordem superior.
Zé Justino recebeu o crachá, examinou-o e, à primeira vista, não gostou
muito. Pequeno demais. Somente a sua cara e o nó da gravata na foto.
Não aparecia sequer o lenço do bolsinho do paletó. Mas, observando bem
o plástico, todo o seu orgulho foi despertado. Logo abaixo da marca
e nome da empresa, estava datilografado em letras maiúsculas, ao lado
do retrato colorido 3 x 3 e do número de sua ficha: Nome: JOSÉ JUSTINO
DA SILVEIRA. Função: AUXILIAR DE FIAÇÃO III. Nem conferiu as demais
anotações. Filiação, data de nascimento e de admissão na empresa, assinatura
do gerente, nada lhe interessava. Bastava o nome e a função que desempenhava
constarem da identificação.
Dia seguinte, aparece o Zé Justino para trabalhar.
– Quedê o crachá? perguntou o segurança da portaria.
– Tá aqui no borso. Tá chuveno e eu num quero moiá ele.
– Oia aqui, Zé. Dipindura ele no butão de seu macacão e nunca mais
ande sem ele. Ordi do gerente da fábrica.
– Sim senhor! Eu num sabia qui era pra dipundará. Truxe ele no borso
qui é pra num istragá!
Zé Justino levou a recomendação ao pé da letra. Satisfeitíssimo, de
vez em quando passava a mão suada sobre o crachá e isso fazia redobrar
o seu ânimo para o trabalho. À saída fez questão que o segurança visse
o cartão preso ao peito e assim foi para casa.
– Filó, prega um butão no paletó do pijama, bem nessa direção, qui
é pra pô o crachá na hora de durmi. Vou batê um prego na parede do banheiro
pra dipundará ele na hora qui eu fô tomá banho. É ordi do gerente da
fábrica e ordi é ordi. E eu tô gostano muito dessa ordi. Oia o meu retrato,
meu nome e o que eu faço iscrito nele. Foi a mió coisa que inventaro
na fábrica inté hoje!
E o Zé não tirava o crachá pra nada. Domingo, na missa, lá estava o
crachá dependurado na roupa. No supermercado, na fila do banco, nas
visitas que fazia e, até nas peladas que frequentava, a identificação
era parte integrante da indumentária.
O Zé Justino só não gostava de uma coisa: o tamanho do crachá. Achava
que ele era muito pequeno e havia certa dificuldade das pessoas lerem
o que ali estava escrito. Tomou uma decisão: em uma folga do serviço,
foi a Belo Horizonte e, numa loja especializada, mandou quintuplicar
o seu tamanho. Fez duas cópias e, na passagem, comprou de um camelô
na Praça da Rodoviária uma correntinha com duas presilhas nas extremidades
para usar a nova identificação. Já no ônibus, guardou o crachá pequeno,
observou as letras quase garrafais do outro, prendeu nele a correntinha
e o colocou no pescoço.
Todo feliz, dia seguinte foi trabalhar portando o crachá novo .
– Nada disso, Zé. Crachá só o oficiá. Me dá esse aí preu guardá procê
e põe o ôtro. qui deve tá no seu borso. Cum esse ocê num pode intrá!
Zé Justino obedeceu e, na hora do almoço, pegou o crachá grande com
o segurança. Ao chegar em casa, recomendou para a Filó:
– Oia, esse crachá aqui num serve pra entrá na fábrica não. Só o piqueno.
Mais eu vou pô ele quando fô nos otro lugá. Ele ficou muito bão e, nas
fila e nas procissão, eu posso jogá ele pras costa e o premero de trás
de mim vai podê vê ele!
E assim, o Zé usava os dois crachás: o oficial para o trabalho e o
grande para satisfação de seu ego.
Mas um dia o Zé e todos os colegas receberam uma carta na seção. Era
o aviso prévio. Dispensa inapelável. No rodapé, depois de citados textos
de lei, ítens e parágrafos, uma recomendação taxativa: “Os crachás deverão
ser devolvidos no ato do acerto”.
Ao comunicar à Filó a dispensa, o Zé, num misto de conformação e revolta,
afirmou
– Mandaro eu simbora. Tem pobrema não. Sirviço a gente arruma otro.
O qui eu num gostei nada é qui eles ainda vai tomá o crachá que me dero!
Mais eu tenho o meu! E ninguém vai proibi de eu andá cum ele! Vou rabiscá
o nome da fábrica e do gerente que tá nele e vou botá ele no pescoço
quando quizé!
E assim cumpriu, até o dia em que sofreu um acidente grave no novo
emprego. Depois de alguns dias de sofrimento, não teve salvação: morreu
o Zé Justino. No velório todos observavam sobre o peito do finado, junto
ao terço, o seu inseparável crachá.
– Cumade Filó, tira aquele papé iscrito de riba do Zé! Pra que isso,
muié! – diz a Ritinha aos ouvidos da viúva.
– É gôsto do Zé, cumade! Quando tava morreno, voz muito baxinha, pidiu
pra pô no caixão dele o crachá, e o otro, qui tá guardado, é pra colocá
no quadro e pindurá ele na parede lá de casa no meio dos retrato dos
minino. Num posso recusá o úrtimo pedido do Zé, né cumade!
* * *
Essa estória me foi relatada pelo Zé Pindoba. Não tenho condições de
afirmar a sua veracidade. Porém, devido à seriedade da fonte não tenho
como duvidar. De minha parte, porém, observei, em andanças pela cidade,
que havia verdadeira idolatria pelo crachá da CCC (*).
Operários e até chefetes, para exibir “status”, cultuavam a identificação
como verdadeiros talismãs, ostentando-a pedantemente fora do recinto
de trabalho. Nada contra, mas que era uma babaquice extrema, não tenho
a menor dúvida!
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(*) CCC - Companhia Cedro e Cachoeira, tecelagem.
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